Eu poderia dizer que a experiência completa de ‘The Beatles” é buscar todo o material sobre a banda. Biografias de cada um dos quatro para enxergar o lado mais pessoal possível da história nos momentos mais introspectivos. Os descontraídos pedem pelos filmes estrelados pelos quatro e suas histórias bobinhas regadas a música. Quem sabe um pouco do humor da animação sobre um submarino amarelo? Ou sua adaptação para quadrinhos? Para recordação, decoração e adoração, coletâneas de fotografias com os bastidores e a vida da banda de perto. A verdade é que suas músicas falam por si. Doze álbuns e uma coleção de singles ao longo de 8 anos de atividade, música sobre amor e sobre nada em particular, sobre as pessoas que estavam por trás delas e por elas se manifestavam. É um prato cheio e mais que suficiente para manter os ouvidos e a mente ocupados por um bom tempo. Mas é claro que a fome não se sacia facilmente, por isso existe todo esse material e um documentário como “The Beatles Anthology” para tentar reunir a informação concisamente .
“The Beatles Anthology” começa nos Anos 40, muito antes de se falar em Rock and Roll e em “Beatles”. Eles ainda estavam nascendo nessa época, literalmente vindo ao mundo e flertando na adolescência com rádios e violões até surgir a idéia de montar uma banda e ver onde daria. Paul McCartney se junta à banda de John Lennon tocando guitarra, que em seguida é acrescida de George Harrison também na guitarra e logo mais por outros membros até chegar em Ringo Starr e completar aquilo que talvez seja até hoje o grupo mais reconhecível de todos os tempos. Se é comum gostar de uma banda e não saber o nome dos integrantes, dificilmente isso acontece com os “Beatles”. Reis da popularidade e líderes da revolução cultural dos Anos 60, eles foram mais do que canções de amor e cortes de cabelo combinando, sua história é de talento que a cada ano ousava quebrar as expectativas sobre seu sucesso. Dos palcos aos estúdios, do começo ao fim, essa minissérie traz a história completa em oito episódios totalizando 10 horas de conteúdo.
Isso é muito tempo. Oito anos de história são suficientes para justificar a duração, afinal não é uma bandinha autoral da cidade de que se fala, é uma das maiores de todos os tempos. Não é à toa que cada um dos quatro membros tem mais de uma biografia escrita, cada uma sem dúvida com pedaços privilegiados de informação, diferentes estilos de escrita e visões sobre a vida de cada um. Cada pessoa envolvida na história tem sua opinião sobre dados assuntos, é uma multiplicidade que quase sempre enriquece a narrativa porque ninguém percebe tudo o tempo todo ou interpreta as coisas da mesma forma. Seria ótimo se o documentário favorecesse esse ideal e trouxesse tanta gente quanto possível para falar dessa banda gigantesca, indo além dos três membros ainda vivos na época e das gravações de Lennon. Estranho é perceber que apenas George Martin parece estar sem freios no discurso.
A idéia de assistir a “The Beatles Anthology” veio de um amigo que há não muito tempo começou a escutar mais a fundo. Falamos de praticamente tudo sobre a banda, desde álbuns e músicas favoritas até as fases pelas quais eles passaram e como elas se comparam, como a identidade deles se transformou tanto, revolucionou e influenciou outras bandas em um período tão curto de tempo. Falei várias vezes dos documentários e filmes que vi, o que levou a gente a assistir a “Let It Be” numa resolução horrível para descobrir mais sobre os últimos suspiros criativos e também para ver as diferenças entre ele e sua nova versão, “The Beatles: Get Back”. Então ele comentou sobre um certo documentário, supostamente o material mais longo e aprofundado sobre a banda. Era “The Beatles Anthology”, o mesmo conjunto de DVDs que outro amigo tinha e enrolava para assistir por ser muito longo. O projeto tem ambição: três álbuns com performances nunca lançadas e duas canções inéditas de Lennon finalizadas pelo grupo; um livro contendo entrevistas, fotos e artes; e a minissérie de oito episódios para a TV.
Naturalmente se pensa que há uma torrente de conteúdo para preencher tudo isso. Oito anos é bastante tempo, por mais que seja pouco para uma banda estar em atividade comparado com os “Rolling Stones” e os “Beach Boys” há mais de 50 na estrada, sem contar o fato de que “The Beatles Anthology” não começa em 1962 com “Love Me Do”, ela traça as origens até quando George Harrison era um pivete com gel no cabelo e sem cabelo no sovaco. E os eventos são contados, um atrás do outro. Começou com Lennon e uma banda chamada “The Quarrymen”, então havia outros rapazes interessados em música por causa daquela coisa fabulosa nas rádios chamada rock and roll. E então havia outros rapazes, um tal de Paul e seu amigo mais novo chamado George, o estudante de arte Stuart Sutcliffe e Pete Best, o baterista antes de Ringo Starr. Como isso eventualmente virou os Beatles? Paul começou como guitarrista? Quem são esses outros caras? Não acaba sendo muita surpresa que o primeiro episódio seja um dos melhores, talvez o melhor, ele é o que dispõe de mais informações, muitas delas desconhecidas para quem só conhecia a banda depois de ela existir de fato.
Também não existiam músicas da banda nessa época. O primeiro single ainda estava por vir, restando apenas os cantos escuros do “Cavern Club” e as residências nas casas noturnas de Hamburg, dormindo em sofás e se cobrindo com a bandeira da Grã Bretanha. É a partir do segundo episódio que “The Beatles Anthology” começa a cair na rotina de gastar boa parte do tempo do episódio com as músicas que qualquer espectador corajoso o bastante para encarar 10 horas de documentário já conhece bem. Nada contra usar ótimas composições para equilibrar entrevistas e depoimentos em seqüência, faz todo o sentido e deveria fazer parte da obra como faz, só não tão freqüentemente. Incomoda especialmente porque fica a impressão de que falta conteúdo. O tempo que poderia ter sido usado para melhorar isso vai em uma dúzia de apresentações de “Please Please Me” e “I Want To Hold Your Hand” e nos clipes rudimentares de várias outras.
Em apenas três anos eles foram de “She loves you, yeah yeah yeah” para “We have lost the time that was so hard to find, and I will lose my mind if you won’t see me” e muito mais longe nos próximos dois, a lugares estranhos em trechos como “I am the egg man, they are the egg men, I am the walrus, goo goo g’joob”. Talvez algo mais espiritualizado como “When you’ve seen beyond yourself then you may find peace of mind is waiting there, and the time will come when you see we’re all one and life flows on within you and without you”. Cada canção é seu próprio animal, produto de um período específico e oriunda de fontes diferentes, cada qual com sua história para contar. Pois bem, quais são elas? “The Beatles Anthology” interpreta isso dizendo que “Penny Lane” foi inspirada na rua chamada “Penny Lane”. Muito perspicaz. Justamente a música cuja letra é tão descritiva do tema. O que com certeza não existe é espaço para o lado artístico escondido, as técnicas, os métodos e o processo criativo por trás das obras-primas. Quem busca insight sobre composição e criação certamente se decepcionará.
A palavra que não saía da minha cabeça enquanto assistia a “The Beatles Anthology” era uneven. Em inglês mesmo. O mais próximo que consigo chegar no português é desbalanceado, desigual não soa direito. A questão de não falar a fundo sobre como os “Beatles” fizeram sua música ao longo dos anos, como George Harrison ganhou espaço na composição até chegar em “Something”, incomoda mas também poderia ter ficado de fora por várias razões, desde guardar segredos até não ser a proposta do documentário. Qual era a proposta então, recontar os fatos? Pois bem, há problemas até nessa parte. A idéia básica seria separar o tempo do documentário para falar um pouco de cada álbum e, por conseqüência, do contexto acerca da vida do Fab Four, doze álbuns em 8 episódios. Concessões teriam de ser feitas. Um álbum ou outro teria de ter menos atenção. “With The Beatles”, talvez? Não. É até tosco pensar no tempo gasto na Beatlemania e na frisada breve sobre “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, que ainda consegue ser mais profunda do que “Abbey Road” e “Revolver”. Enquanto isso, se fala um monte de “Magical Mystery Tour” e de “Yellow Submarine”. Muito interessante falar de aventuras no cinema e atolar três grandes álbuns no último episódio.; colocar clipes já conhecidos em vez de cortar a parte sobre George não ser aceito na banda primeiramente por ser muito novo e ter que insistir até conseguir uma nova chance.
Fica claro que não se sabe dividir seu tempo entre os assuntos. Não há problema em favorecer o começo da carreira e o ápice da popularidade da banda, são dedicados três ou mais episódios a esse período, ou seja, quase metade da minissérie. O problema é perceber que “Eight Days a Week – The Touring Years” cobre mais ou menos o mesmo período com mais profundidade em apenas 106 minutos. Sinal de algo errado na narrativa. Talvez seja a questão dos clipes, dos shows e das canções tomarem um tempo precioso. Talvez seja como um crítico chamou “The Beatles Anthology”: uma celebração diplomática em vez de ser o material definitivo sobre a banda e seu legado. Acordos foram feitos para não ferir as sensibilidades por conta de relatos conflitantes. Mas não é daí que surge a mágica do documentário, reunir pontos de vista diferenciados em uma coesão complementar? Cumpre-se a função básica de contar a história inteira, do começo mais preliminar até o final, deixando de lado os detalhes e as oportunidades de aprofundar mais que outras obras. É a decisão tomada em prol da nostalgia e da auto-celebração.