“Parasita”, “Parasita”, “Parasita”. Todos falam desse filme. Sem parar. Todos os dias. Uma boa parcela sendo as mesmas pessoas que iam ao banheiro durante o anúncio do vencedor de Melhor Filme Estrangeiro ou que nunca assistem nada em idiomas diferentes do inglês. Não que isso seja ruim, seria até melhor se tal empolgação iniciasse uma onda de interesse pelo cinema de outros países, mas não deixa de ser curioso. Talvez até um pouco incômodo escutar tanto antes de finalmente conferir e ver se era tudo isso mesmo. Felizmente, as pessoas não estavam erradas e a obra é de uma competência que faz até os mais frescos esquecerem que o idioma falado é incompreensível.
A família Kim passa por apuros. Vivendo em um apartamento de porão em um bairro pobre da cidade, o grupo de quatro vive de migalhas para conseguir se sustentar no nível mais básico. Uma oportunidade de ouro surge quando o amigo de Ki-woo Kim (Woo-sik Choi) oferece a oportunidade para trabalhar como professor de inglês de uma garota rica. Ao chegar na casa e encontrar uma família desestabilizada de sua própria maneira, Ki-woo aproveita para estender sua boa fortuna para sua irmã e pais usando trapaça e mentiras.
É bom falar pouco da história para o filme ter impacto máximo. “Parasita” é um daqueles exemplos de que quanto menos se souber, melhor. Ao invés da história construída em cima de uma grande reviravolta que não deve ser revelada de forma alguma, encontra-se algo estranho. Comum com certeza não é uma palavra aplicável. Nada do conteúdo traz uma situação familiar ou de que se ouviu falar por aí. Quando se fala em um limite para escândalos da vida cotidiana, costuma-se pensar na loucura de uma moça trair o namorado com o pai dele, um funcionário perder a cabeça e partir para cima de um cliente no trabalho ou um pai tirar dinheiro do sustento de sua família para sustentar desproporcionalmente uma amante. São coisas incomuns num campo imaginável, talvez ainda se ouça falar delas em algum momento da vida. Ainda assim, bem diferentes de onde eventualmente se chega com este longa-metragem.
Enquanto o começo de “Parasita” pode lembrar mais “Assunto de Família” e seu olhar sobre pessoas sobrevivendo com trocados aqui um e um pequeno furto ali, sempre focado na parte humana da história; o resto está mais para “Oldboy”. Seria simples o bastante traçar o paralelo de que ambos são sul-coreanos e que existe uma tendência ali. Talvez seja até verdade, embora isso não tire o mérito de nenhum trabalho individual por executar a mesma idéia de escalar o conflito a patamares surreais. Cada um faz isso com seu próprio quê de originalidade. Aqui não é diferente.
Foi através dessa similaridade de tema e tom que acabei pensando que “Parasita” compartilhava diretor com “Oldboy” em vez de “Snowpiercer”. Aliás, é até melhor que a similaridade seja essa porque este outro, embora tenha uma premissa interessante, se mostra aquém de seu potencial por soar raso e cair no clichê ocasionalmente. Em oposição, o único pecado de “Parasita”, realmente, é seu final ter um quê de insatisfação e abrir margem para questionamentos de lógica por parte do espectador. ”Isso não faz sentido” é uma das piores coisas que alguém pode falar de um filme porque pode ser um sinal de que ele não respeita suas próprias regras. Especialmente depois de um clímax coroando a evolução de conflito com uma dose de intensidade a base de violência, caos e loucura, parece que o final simplesmente não faz jus aos eventos anteriores. Ele estabelece um argumento lógico sobre o destino dos personagens usando uma idéia que, sinceramente, parece ilógica depois de tudo que aconteceu.
No geral, esse texto mais tem sido um apanhado de impressões sobre o que esperar da história e como ela funciona ou não, tentando sempre deixar de lado o máximo possível do conteúdo para não estragar o tipo de surpresa que fez tantas pessoas olharem de novo para aquele filme da Coréia do Sul que vai concorrer com vários outros estrangeiros de que ninguém ouviu falar. A idéia é de fato ilustrar as qualidades de uma narrativa sem freios, como uma imaginação fértil que produz sem os filtros adquiridos na vida adulta de que as coisas devem ser desse jeito e daquele, que as pessoas não aceitarão idéias absurdas. Talvez já não seja tanto uma questão de ousadia quando se tem em mente as reviravoltas de outros filmes sul-coreanos, mas isso é falando em um macrocontexto, enquanto o que importa de fato é o micro: como a obra individual estabelece algo inicialmente e então cresce em cima disso. Isso é algo que “Parasita” faz com maestria.
Não se pode esquecer dos detalhes técnicos tão presentes aqui quanto em qualquer outro filme. Sendo uma trama sobre mentiras e enganações, é necessário que o espectador seja tão enganado quanto os alvos na obra. Claro, ele sabe da verdade. Cabe ao filme convencer que outros poderiam cair na mentira se não soubessem. O elenco mais do que cumpre essa demanda e opera numa união de forma que não se fala de um personagem ou de outro com destaque, mas de como o grande todo evolui e adiciona ou exclui membros sem perder a força necessária para cada cena funcionar. Já a qualidade visual de “Parasita” perde um pouco desse destaque na hora de relembrar os grandes méritos porque muitos cenários se resumem a uma casa e seus cômodos. É aí que se pode cometer o erro de esquecer que as seqüências mais impressionantes além do clímax são quando os detalhes gráficos se multiplicam e a mise-en-scène trabalha a fim de os tornar parte de um grande arranjo de elementos com função narrativa. É mais do que mero espetáculo, com certeza.
“Parasita” é o filme perfeito para quebrar preconceitos a respeito do cinema estrangeiro. Ainda há quem ache que filmes europeus, asiáticos e outros são demonstrações longas de auto-indulgência de relativismo artístico. Tomadas longas sem diálogo ou música, obras inteiras sem ação e seqüências usando de simbologia pesada ou visuais psicodélicos com supostos significados. Não que isso seja totalmente sem fundamento porque já existiu e ainda existe no circuito de festivais. É apenas ótimo que um filme tão bom seja tão popular usando uma linguagem relativamente tradicional e, mais importante, acessível ao grande público. Uma narrativa de enredo forte e de dinâmica causal — a tal arquitrama — não é exclusividade do mercado americano.