Um garoto e um homem mais velho estão dentro de um supermercado vendo as prateleiras. Tudo aparentemente normal, exceto que eles não pretendem comprar nada. A única forma de ajudar a sustentar a casa onde moram é roubando o que precisam sem ninguém ver, já que o dinheiro do trabalho nunca é suficiente. A vida se conduz aos tropeços e se complica mais quando uma garotinha da vizinhança é encontrada trancada para fora de casa em um dia congelante. Os dois decidem ajudar e dar um novo lar para ela. É uma boca a mais para alimentar, porém pela primeira vez em muito tempo é uma das coisas mais certas que acontecem no lugar. É assim que “Assunto de Família” começa.
Meu maior medo ao assistir os primeiros momentos de “Assunto de Família” foi ele ser mais um filme dito culto: narrativa solta e enredo raso, imagens de caráter subjetivo e uma abordagem reflexiva dos eventos a fim de extrair algum tipo de significado fantástico deles. Há quem goste disso, mas a maioria dos casos que tentam a sorte neste formato infeliz — que permanece popular entre cineastas alternativos, por algum motivo — acabam sendo falhos em sua proposta por não transmitirem de fato os significados que tentam enaltecer ou por simplesmente resultarem em experiências tediosas. A história deste filme começa exatamente assim, dando poucos detalhes sobre o contexto e seguindo em frente mesmo assim. O espectador fica limitado ao entendimento dos eventos imediatos sem saber quem é cada personagem, o que fazem ali, o que fizeram para estar ali e onde querem chegar com tudo isso.
Às vezes tal economia com informação e explicação é proposital. A narrativa não quer que o espectador saiba demais, apenas conheça parte da informação para caminhar exatamente por onde ela quer que ele caminhe. Não diria a princípio que “Assunto de Família” é um caso explícito de manipulação hitchcockiana de omitir informação para manter um estado de ignorância intencional. Também não se encaixa no clichê infeliz de tantos supostos filmes-arte, o que já é dizer muito porque significa que o produto não é falho. Apesar de não ficar imediatamente claro que há uma boa razão para a narrativa supostamente largada, eventualmente fica claro que a intenção inicial é familiarizar e inserir a audiência no contexto bastante peculiar daquela família.
Assim, o foco recai sobre questões diferentes. Em vez de especificar qual a lógica dominante de uma casa em que seis pessoas vivem, mas aparentemente não compartilham uma conexão inconfundível de família, nada se explica. Apenas se expõe o dia-a-dia das pessoas que vivem ali. Sem explanar porque elas moram na casa exatamente, “Assunto de Família” permite que o espectador tire suas próprias conclusões e descubra aos poucos qual a relação exata entre os personagens e seu ambiente. Por que alguns roubam mercadinhos todos os dias em vez de trabalhar como outros do lugar fazem? O que une todos realmente, sendo que a conexão elementar de apreciação mútua não mostra sinal de vida? A convivência dentro daquele lugar certamente está fora de qualquer padrão popular.
O interesse se constrói e se conserva em cima dessa desinformação inicial. A abordagem naturalista e vagarosa dos eventos evita passar a impressão de dosagem controlada e meticulosa de exposição. A alternativa escolhida é criar a ilusão de rotina usando eventos sem grandiosidade ou destaque notável. É mais ou menos como uma convivência conturbada na vida real: não se fala o tempo todo sobre os assuntos que doem, sempre se busca a oportunidade de falar quando parece apropriado. Até esse momento chegar, há tantos outros em que nada ou coisas banais acontecem; a vida seguindo em frente como se estivesse tudo normal enquanto a vontade de tocar no assunto martela constantemente. “Assunto de Família” mata em uma tacada o presente e o passado ao mostrar as atividades diárias e peculiares daquele grupo com ocasionais conversas e atitudes reveladoras de sua história. De certa forma, é um tipo de exposição orgânica de informação levada literalmente.
Nada disso funcionaria sem interpretações a par da necessidade de criar personagens afogados em seu próprio estilo de vida abusivo. Nenhum deles tem opção de sair dali e trocar por uma opção mais agradável, pois esta é uma palavra sequer cogitada. As coisas são o que são e devem ser aceitas assim. O objetivo de todos é dar um jeito de manter as coisas num nível sustentável o bastante para conseguirem dormir à noite. E cada um lida com essa realidade de sua forma. Mesmo sendo um grupo vivendo sob o mesmo teto nas mesmas condições, o que se encontra passa bem longe de uma mentalidade de manada ou de colméia. Tamanha atenção para a realidade individual de cada personagem, independentemente do tempo de tela e da importância no enredo, demonstra preocupação com o assunto e sua complexidade. Trata-se de criar oportunidades de cada ator ser um indivíduo diferente reagindo a estímulos parecidos, conectando personalidade de personagem aos seus objetivos a fim de não ser uma mera diferenciação, mas uma decisão consciente e coesa com as demandas da história.
“Assunto de Família” começa com a promessa de algo duvidoso. Parece que a vida daqueles indivíduos quase sem-teto será explorada em eventos cotidianos sem muito propósito além de expor as idiossincrasias daquele estilo de vida. Ou pior, tentando engrandecer a narrativa com algum subtexto conhecido apenas para o criador da obra e mais ninguém, um clássico caso de solipsismo. Mas não, “Assunto de Família” aos poucos desarma esta primeira impressão conforme explora sem pressa, sem pretensões incoerentes e sem simplificações a vida de cada pessoa. Todas as dúvidas — ou grande parte delas — são respondidas satisfatoriamente, pois a história demonstra não se apoiar somente no contexto inicial, também tendo o desenvolvimento e transformação deste nos planos. Só isso — o que não é pouco — já é mais do que o bastante para separar esta obra daquelas pretensiosas e confusas tentando se esconder sob a máscara de serem “cult”. Todo o resto apenas eleva o status para algo próximo de extraordinário.