Depois da recepção mista de “Star Wars: The Last Jedi”, a carreira de Rian Johnson em Hollywood chega ao fim. Ou é algo próximo disso que muitos devem ter pensado. De fato a abordagem do diretor e roteirista na chocou a audiência. Para bem e para mal. Alguns gostaram muito da ousadia e outros detestaram absolutamente. Parte dos problemas se apresentou no roteiro com premissas enfadonhas e mal pensadas, além de trechos inteiros de relevância questionável para a história; isso sem chegar na questão de ousadia nas decisões a respeito de alguns personagens. Então surge “Knives Out”, um filme que tem encontrado aclamação e sucesso a despeito do que alguns pensavam sobre a carreira de Johnson pós-Star Wars.
A casa dos Thrombey passa pelo momento mais difícil de sua existência. E não faltam exemplos disso em sua história. O patriarca da família, autor de livros de mistério de milhões em patrimônio, é encontrado com a garganta cortada em seu escritório. Tudo indica que foi suicídio. Filhos, netos e todo o resto se reúnem na casa para decidir o que fazer a seguir, esclarecer a verdade sobre o caso sem esquecer do mais importante: decidir como a herança vai ser dividida. Mas quando um notório detetive particular aparece na residência para fazer algumas perguntas para os familiares, fica claro que há algo mais por trás da versão aceita dos fatos.
Ver a premissa de “Knives Out”, o material publicitário, os trailers e tudo mais trouxe uma lembrança automática de alguns trabalhos clássicos da literatura de mistério, especialmente as histórias de Agatha Christie sobre Hercule Poirot e Miss Marple. A premissa praticamente grita isso logo nos primeiros instantes, quando a governanta aparece para servir o café da manhã e encontra um cadáver. Não demora muito e os policiais chegam na casa para falar com a família. Junto com eles, um detetive que escuta cada um dos depoimentos e faz perguntas aparentemente corriqueiras sem nenhuma segunda intenção à vista. Similar o bastante com as entrevistas com os passageiros em “Murder on the Orient Express”? Talvez até mais parecido com “Sleuth”, outro mistério ambientando numa mansão antiga e envolvendo um entusiasta por mistérios. O espírito certamente é o mesmo.
A primeira característica impressionante de “Knives Out” é seu elenco com um número respeitável de atores de competência e popularidade, a maioria ocupando os papéis coadjuvantes e fazendo um trabalho excelente mesmo assim. Os papéis principais ficam a cargo de Daniel Craig e Ana de Armas, já os papéis dos familiares sobram para Jamie Lee Curtis, Michael Shannon, Chris Evans, Toni Collette e outros mais. São personagens cuja presença menor nada diz sobre sua relevância. É aí que entra a importância de serem bons atores ocupando esses postos. Assim como “Murder on the Orient Express”, que conta com Sean Connery, Albert Finney, Ingrid Bergman e outros grandes nomes, é muito positivo que esses personagens sejam bons em sua falsidade, em contar uma mentira com credibilidade o bastante para parecerem bons mentirosos ao mesmo tempo que deixam uma pista de que estão mentindo, nunca de forma gritante.
Daniel Craig assume a linha de frente como o detetive contratado para resolver o mistério. Mas qual mistério? A perícia revelou a causa da morte e não há razão para pensar que haveria qualquer outra explicação. Sua presença ali nem faz muito sentido, em primeiro lugar, mas ele foi contratado e ao menos acompanha o processo. Bem diferente daquilo que seria um mistério de fato ou uma história boa demais para ser verdade exigindo a atenção e o talento únicos do detetive. Aliás, até esse ponto pode ser colocado em xeque por também fugir do estereótipo de gênio da solução de crimes. Ele é bom, tem seus momentos, mas não é como se algo clicasse em sua cabeça, a solução viesse de uma vez e ele tivesse que explicar tudo para as mentes lerdas da audiência. Há um pouco disso em “Knives Out”, na verdade, apenas não na forma de um elemento previsível.
São essas pequenas viradas recorrentes que aos poucos mudam a idéia inicial sobre “Knives Out”. Qualquer sinal sugerindo que essa é outra história de detetive como as dezenas que existem por aí morrem conforme aparecem tais pequenas variações das características clássicas. Mais do que isso, a qualidade quintessencial de uma narrativa desse tipo existe aqui: o mistério tem que se retorcer, voltar alguns passos atrás para mudar uma coisa ou outra, seguir em frente e virar tudo ao avesso. Um mistério dos bons é aquele que se destaca do resto através de sua complexidade e imprevisibilidade; isto é, complexidade sem complicação. É aqui que Rian Johnson mais que se redime, mostrando sua competência em criar uma história de muitas reviravoltas sem cometer os mesmos erros de “Star Wars: The Last Jedi”. Ela é definitivamente o ponto mais alto da experiência e isso se torna visível principalmente quando as cartas são postas na mesa e o espectador percebe que todas as voltas de antes tiveram propósito.
Além do mais, “Knives Out” é um filme muito engraçado. Uma boa parte das ditas mudanças e novidades em cima dos elementos clássicos se dá através de um tom satírico sobre toda a situação, sem muito respeito pela figura do detetive super-inteligente, por exemplo. Outra parte novamente provém dos esforços de Johnson, dessa vez através de anedotas visuais recorrentes e de um uso inteligente da manipulação de imagens para enganar o espectador e puxar seu tapete novamente, exceto que dessa vez para provocar uma risada em vez de virar o enredo ao avesso. E por que não? Nem tudo precisa de um tom austero o tempo todo. Em tempos de se levar tudo a sério, é bom encontrar uma experiência que proporciona um fluxo agradável através do tom da narrativa, que também ajuda a entender melhor as mil e uma contorções da trama.