A tradução de “Cat on a Hot Tin Roof”, “Gata em um Teto de Zinco Quente”, é uma que coloca o espectador para coçar a cabeça e pensar que tipo de drogas o autor usou quando chegou nele. Sem explicação prévia, não há indicação alguma do seu possível significado ou do que a história se trata; se é uma comédia, um drama ou um filme sobre felinos falantes passando seu tempo em cima de telhados quentes. Felizmente, tudo vem a fazer sentido em algum momento da história, então resta ao espectador confiar que uma peça de Tennessee Williams premiada com o Pulitzer estrelando Paul Newman e Elizabeth Taylor renda bons resultados. Incentivo o bastante, não?
A família Pollitt está se preparando para um grande evento: o patriarca, Harvey “Big Daddy” Pollitt (Burl Ives) está voltando de uma bateria de exames para determinar seu estado de saúde em tempo para uma grande festa de aniversário preparada por sua esposa e filhos. Uma parte da família está entusiasmada pelo evento todo e faz questão de demonstrar isso intensa e constantemente através de canções, exibicionismos e bajulações diversas; Cooper (Jack Carson), sua esposa Mae Flynn (Madeleine Sherwood) e seus filhos buscam cair nas graças do velho para herdar seu império. Enquanto isso, Brick Pollitt (Paul Newman) não faz muita questão de agradar o pai, a mãe ou sua esposa, Maggie (Elizabeth Taylor), que sabe muito bem da ambição dos outros.
Se existe um tipo de história que eu gostaria de poder contar, seria algo bem próximo ao que se vê em “Cat on a Hot Tin Roof”: um drama familiar envolvendo nada mais do que personalidades distintas, objetivos conflitantes e passados conturbados resgatados para criar novos problemas. O cenário do filme inteiro é a mansão dos Pollitt, seus cômodos e o quintal, exceto por duas cenas ambientadas no aeroporto e na pista de atletismo da escola. O grosso da trama se passa no mesmo lugar com os personagens conversando sobre o grande elefante branco dentro da sala enquanto deixam escapara comentários sobre os porcos voadores também no ambiente. Em outras palavras, há assuntos fazendo a pressão de lâminas contra carne constantemente, suplicando para serem discutidos abertamente e finalmente resolvidos.
Mas como todo bom drama, “Cat on a Hot Tin Roof” não entrega o jogo imediatamente. Mal se sabe o que está acontecendo nos primeiros momentos além do conteúdo bruto das cenas, ou seja, aquilo que é visto sem nenhuma associação semântica. A primeira cena mostra Brick na pista de atletismo da escola à noite, claramente bêbado e prestes a tentar fazer algo que certamente não faria sóbrio: pular obstáculos. Por que ele faz isso? Tem de haver um motivo além de uma aventura embriagada típica de final de noite. Em seguida, ele está em casa com o tornozelo quebrado e sua esposa se arrumando em frente ao espelho, falando pelos cotovelos e tentando de todas as formas chamar a atenção do rapaz para ela, seja com suas perguntas infindáveis ou com sua forma física voluptuosamente chamativa. Afinal de contas, é de Elizabeth Taylor que se fala.
Novamente fica a dúvida do porquê uma mulher como Taylor seria recusada por seu marido, mesmo ele sendo Paul Newman. O bloqueio ultrapassa o sentimental, chega a ser físico e verbal por Brick não ceder nem mesmo um espaço mínimo para existir algum tipo de relação com a moça com quem era para estar casado, tratada pior do que um estranho seria tratado porque então haveria um pouco de educação envolvida. Mais um mistério. “Cat on a Hot Tin Roof” é uma obra-prima na construção de uma narrativa instigante e provocativa, sempre atiçando o interesse do espectador com frases inacabadas e situações mal explicadas sem nunca o perder no meio do caminho por dar pistas de menos, por exemplo.
E eventualmente é claro que tudo explode. O conflito de “Cat on a Hot Tin Roof” transcende a intensidade por si, o qual se mostra apropriado para compor o clímax. Já não há mais espaço para um conflito de indiretas, fofocas e agressividade passiva; tudo isso dá lugar a ofensas direcionadas, opiniões indelicadas explicitadas e até gritarias, uma discórdia generalizada. O diferencial é encontrar nisso a profundidade de uma escrita tão preocupada com a raiz do conflito quanto com sua intensidade. Depois de que tudo vem e vai, repensar alguns conceitos básicos a respeito de família, valores humanos elementares e o significado verdadeiro de orgulho é quase uma conseqüência obrigatória. Quando personagens passam por estágios que vão da repressão introvertida à expressão bruta e brutal de sentimentos de um jeito caótico, apropriado à inaptidão do ser humano de ser transparente neste nível de intensidade, é como se uma questão humana inatamente complexa fosse condensada em uma narrativa coesa de pouco mais de duas horas sem perder nem um pouco de sua fidelidade. É o tipo de mágica de pegar um problema, uma questão, que às vezes dura uma vida inteira e nunca se resolve diretamente, e o transpor numa mídia que o torna coeso e compreensível.
A presença de um elenco impecável novamente mostra como a receita para uma grande história — ou uma grande peça, mais especificamente — é um texto dos bons e atores à sua altura. Paul Newman e Elizabeth Taylor, duas das pessoas mais desejadas de sua época, usam isso a seu favor para criar uma tensão de nível sexual para complementar toda a discordância oriunda do enredo. Parte do elenco reprisou seus papéis da produção teatral original, o que quase sempre é positivo e mais ainda quando elementos especiais como Madeleine Sherwood são encontrados, interpretações marcantes que não deixam margem para imaginar outra pessoa no lugar. Como alguém poderia ser tão bem-sucedida em interpretar a estupidez gritante em um semblante igualmente burro, eu não sei. Chega a ser incômodo olhar para a personagem porque o desgosto é automático, assim como a simpatia pelo marido que cometeu o erro de se casar com ela.
Infelizmente, a cópia de “Cat on a Hot Tin Roof” a que assisti não era a remasterização para alta definição feita em 2016, a qual removeu um problema do sistema de cores Eastmancolor em que a saturação e os amarelos estouravam de forma artificial. Por mais azuis que os olhos de Newman e Taylor fiquem, não poder apreciar a cinematografia com as cores originalmente pretendidas se mostra um problema de cunho secundário, mas ainda assim perceptível. Felizmente, a história não depende muito de fidelidade de cores ou de ambientes graficamente complexos para funcionar. A verdadeira jóia a ser encontrada aqui é a escrita de personagens colocados em curso de colisão entre si, ver como suas naturezas e opiniões diferentes os colocam em oposição inevitável, por mais que tentem ao máximo fugir do atrito.