“Murder on the Orient Express” é provavelmente o livro mais famoso de Agatha Christie, que tem mais de 60 em seu repertório. Talvez “The Murder of Roger Ackroyd” seja o único concorrente forte para esse posto, perdendo apenas por conta da popularidade resultante das adaptações para o cinema da primeira, inclusive uma lançada recentemente em 2017. Inclusive, a única razão para ter deixado passar essa versão mais nova foi não ter visto a antiga ainda. Com seis indicações ao Oscar, um elenco grande e repleto de nomes conhecidos e uma eventual vitória, assistir ao novo antes não fazia muito sentido.
A viagem de Hercule Poirot (Albert Finney) está para terminar. A última parte da jornada é embarcar no famoso Expresso Oriente em Bagdá até chegar em Londres. A viagem começa e um clima estranho paira quando um passageiro tenta contratar Poirot para ser seu guarda-costas, com este último recusando a proposta a despeito da insistência e do dinheiro. E, assim, o homem é encontrado morto na próxima manhã, com apenas algumas pistas esquisitas deixadas para trás. Com a viagem interrompida por causa de bancos de neve nos trilhos, resta ao detetive resolver o mistério antes do trem chegar na próxima estação e cair nas mãos das autoridades.
Os que conhecem Agatha Christie sabem que existe um certo formato — talvez inventado pela própria autora — seguido em vários de seus livros. Começa com um grande mistério impossível de resolver nas primeiras páginas a não ser por pura sorte ao adivinhar, sem informação o bastante para chegar numa resolução lógica. Estas são introduzidas aos poucos, às vezes na intenção de enganar o leitor propositalmente, até que as últimas dez páginas trazem o detetive reunindo seus suspeitos e explicando exatamente como chegou na sua conclusão. Selecionar a informação exposta e manter uma linha de raciocínio fácil para a audiência acompanhar é, talvez, o maior desafio de uma obra como esta; seria fácil mostrar o personagem falando sobre algo e o espectador não entender do que ele está falando porque já se perdeu nos detalhes. É um problema que “Murder on the Orient Express” consegue resolver, ainda que não da melhor forma.
Talvez por medo de pecar por falta de informação, “Murder on the Orient Express” não confia muito na inteligência de seu público e retoma algumas informações mais ou menos a cada ocasião que Poirot faz uma sessão de perguntas, algo típico de seu método de trabalho. Ele entrevista cada uma das pessoas envolvidas fazendo perguntas sobre o que estavam fazendo em dado espaço de tempo, normalmente tentando pegar pistas na forma como as respostas são dadas e nas reações ao invés de usar apenas as respostas como informação de fato. Alguém sempre está mentindo a respeito de algo, às vezes um detalhe. Também parece que o mistério como um todo é simplificado de forma que não existam tantos detalhes como no livro, meio em que é mais fácil simplesmente voltar um pouco e contextualizar. Mesmo assim, essa adaptação cinematográfica encontra no flashback uma maneira de realizar esse resgate expositivo. O problema é que é freqüente demais, além de curto, sendo um pouco distrativo e até desnecessário, levando em conta que não há tantos detalhes assim para lembrar. A explicação de todo o mistério no final seria mais que suficiente para dispensar os flashbacks.
O principal atrativo da obra sempre foi seu elenco de estrelas, uma das raras ocasiões em que praticamente todos os personagens relevantes são interpretados por um grande ator que normalmente ocupa a posição de estrela principal. Todos ocupam papéis de igual importância, todos coadjuvantes. Mesmo Ingrid Bergman, que venceu o Oscar por seu papel, interpreta a personagem mais comum de todos os tempos, uma mulher que fala em Jesus o tempo todo e mal consegue se virar com seu inglês. O papel em si é pequeno, é o que ela faz com ele que o destaca do resto; as qualidades mais simples transformadas em gatilhos para emoções mais profundas. É um papel que soaria banal para a maioria das pessoas e até mesmo no livro passa essa impressão. Lumet queria outro papel mais singular para Bergman, mas ela insistiu e quis ficar com o mais simples talvez para se desafiar. Ela conseguiu, no final das contas.
O resto do elenco de “Murder on the Orient Express” brilha momentaneamente ao longo da história. Papéis limitados levados ao máximo por sua importância na história e pelas interpretações atraentes. Os nomes dizem tudo: Sean Connery como um alfa orgulhoso, coronel do exército inglês Arbuthnot, com a experiência de anos no papel do homem mais masculino da história do cinema, James Bond; Lauren Bacall encarnando a chatice insuportável daquelas senhoras incapazes de ficarem caladas e de se intrometer no assunto dos outros, Senhora Hubbard; Martin Balsam novamente com Sidney Lumet interpretando o chefe da linha férrea, Senhor Bianchi; Anthony Perkins trazendo à tona um subtexto psicológico conturbado como o secretário McQueen; entre outras figuras um pouco menos conhecidas demonstrando competência comparável. Mas ainda falta uma figura importante: o protagonista.
Albert Finney foi o alvo das poucas críticas de Agatha Christie em relação a essa adaptação, uma das poucas que ela admira. E com razão. Relativamente. Sua crítica foi a respeito do bigode do personagem, por não parecer o melhor de toda a Inglaterra. Talvez ela tenha um ponto, de fato não parece o melhor e, ademais, a interpretação de Finney mostra ter uma qualidade inconstante. Nunca chega a ser plenamente ruim, apenas ocasionalmente exagerada na forma que tentam fazê-lo parecer um indivíduo de gostos e trejeitos peculiares. Sua descrição sempre foi de um homem de baixa estatura, modos refinados e algumas excentricidades que sempre chamam a atenção. “Murder on the Orient Express” às vezes parece se preocupar demais em mostrar esse lado excêntrico, resultando numa caracterização exagerada que esquece um pouco da finesse e da inteligência evidente dele.
Mesmo que com alguns problemas aqui e ali, “Murder on the Orient Express” é uma boa adaptação do livro, que ainda assim parece melhor do que a nova abordagem sugerida pelos trailers da versão de Kenneth Brannagh. Poderia ser um excelente filme com algumas correções pontuais e outras um pouco mais complexas, como a interpretação do protagonista, eventualmente sendo premiado pela indicação verdadeiramente merecida de Ingrid Bergman.