Os Anos 60 foram tempos de revolução. O final da década, em especial, trouxe algumas das maiores mudanças em praticamente todos os âmbitos, similar a um clímax trazendo um último pico de tensão antes dos momentos finais. Então o clima esfria e as mudanças entram numa fase mais calma e estável, gradativamente soando menos radicais para os adeptos do antigo status quo. 1967 ainda era um momento de ânimos em alta e de reações explícitas a eventos culturais recentes, como se pode ver nos trabalhos de Sidney Poitier do mesmo ano: “In the Heat of the Night“, “To Sir with Love” e “Guess Who’s Coming to Dinner”. Este último, assim como o primeiro, são excelentes respostas ao tumulto social envolvendo racismo daquele tempo.
Joey Drayton (Katharine Houghton) volta de suas férias no Havaí com algumas novidades, talvez as maiores de toda sua vida. Naturalmente, ela quer contar para seus pais tudo sobre a viagem e sobre a grande notícia envolvendo a pessoa que ela conheceu e com quem planeja se casar em breve. Só há um detalhe: o rapaz é negro. John Prentice (Sidney Poitier), médico bem-sucedido com carreira internacional, sabe que isso pode ser um problema e se mostra um pouco apreensivo de conhecer os sogros e já dar a grande notícia de uma vez só. Joey, por outro lado, tem certeza absoluta que dará tudo certo e que seus pais, Christina (Katharine Hepburn) e Matt (Spencer Tracy), aceitarão de todo coração a união. Tudo se encaminha para um jantar com tudo para ser polêmico.
Filmes sobre racismo não são exclusividade dos últimos anos e todo o debate envolvendo a pouca diversidade étnica nas artes. O movimento “Oscars So White” é o maior exemplo recente, sendo o catalisador de uma resposta quase imediata de Hollywood. Já no ano seguinte houve um número significativo de produções abordando diretamente as demandas do movimento, o mercado atendendo aos pedidos de seu público e faturando em cima de seus interesses. Não que seja uma exploração descarada sem valor artístico algum, é apenas uma forma de sintonizar nas vontades do povo e manter o mercado em funcionamento. “Guess Who’s Coming to Dinner” segue este caminho abordando diretamente os estereótipos étnicos.
Inicialmente, não parece uma abordagem engenhosa. Trata-se de uma inversão de valores: transformar o coadjuvante em protagonista, fazer do ignorante alguém culto, mudar o maloqueiro para alguém estudado, trocar o discurso cheio de gírias por concisão e fluência. É como alguns faroestes fizeram ao representar os índios como sábios ao invés de selvagens homicidas. “Guess Who’s Coming to Dinner” traz John Prentice como um prestigioso médico que mal para em um lugar porque precisa discursar em algum congresso ou fazer missão em um país pobre para mudar concretamente a condição dos necessitados mais do que idéias, livros e promessas. Ele é como uma pessoa perfeita, impecável no quesito profissional e também extremamente sensata nos assuntos pessoais. O único problema é ele ser negro, isto é, problema relativo para os personagens da história. É esse o conflito central: como não há motivo para criticar tal pessoa, qualquer crítica teria de ser relacionada à sua cor da pele.
É uma técnica identificável no roteiro — o personagem não apresenta defeitos mesmo — que não resume a obra como um todo, senão seria apenas uma subversão barata de trazer o exato oposto daquilo que se viu nas últimas décadas e criar uma situação em que o único argumento possível dos pais contra o casamento seria a etnia do rapaz. Isso seria uma história pobre e sem motivação instigante, apenas ir contra a maré porque sim e fazer diferente sem fazer direito. “Guess Who’s Coming to Dinner” vai muito além disso e nunca se limita as complicações ao mero fato do namorado ser negro. É isso e mais uma série de outras coisas relacionadas a ele, à garota, aos pais e à sociedade da época. Ao introduzir questões adjacentes à idéia primordial de homem negro casando-se com uma garota branca, a história ganha substância e cresce em cima do óbvio.
Tudo finalmente culmina num clímax esperado desde os primeiros segundos e talvez antes, desde a leitura da premissa. “Guess Who’s Coming to Dinner” já entrega em seu título que algo incomum surgirá no jantar, algo que já fica claro ao longo da história. O filme todo é uma grande construção de tensão em direção a um grande momento, o que não soa como grande coisa por ser a estrutura dramática padrão e ao mesmo tempo impressiona por fazer questão de chamar a atenção para isso. Em teoria, faz todo o sentido manter invisíveis as engrenagens da narrativa para que a audiência não percebe que está sendo conduzida e para onde. A ironia é que a tensão nasce porque existe algo óbvio no horizonte e o espectador acompanha a inquietação crescente segundo por segundo junto dos personagens. O atrito é inevitável e o resultado, por vezes, é incerto. A diferença entre essa obra e uma outra similar medíocre é que as respostas nunca são óbvias, mesmo com a transparência dramática mostrada.
Com uma abordagem tão peculiar, o sucesso recai sobre os atores. É sua tarefa fazer os momentos acontecerem de fato, que foram preparados pelo roteiro, planejados e estruturados dentro de um grande plano, faltando apenas — como se fosse tarefa simples — evocar e sustentar os sentimentos pertinentes à intenção da cena. Felizmente, o elenco de “Guess Who’s Coming to Dinner” transborda competência e grandes nomes. Apenas um detalhe soava estranho: este foi o último trabalho de Spencer Tracy, que estava com saúde ruim e faleceu apenas 17 dias depois do fim das gravações. Meu medo era que sua interpretação teria sofrido de alguma forma por causa de seu estado, ao passo que aconteceu o exato oposto. Tracy nunca pareceu tão vivo, trazendo a energia de um pai preocupado com o futuro que sua filha aparentemente escolhe tão levianamente, um pai em conflito com as pessoas que ama e questionando se suas próprias motivações são tão válidas quanto acha.
O resto do elenco não tem uma presença tão forte porque os momentos mais críticos recaem sobre as costas de seu personagem. Tanto é que a última cena é uma demonstração perfeita do porquê Spencer Tracy faz parte do panteão de melhores atores de todos os tempos, é pura proficiência diante da câmera. Não é como se o resto fosse fraco, até porque se trata de Katharine Hepburn e Sidney Poitier no elenco, eles só não brilham tanto apesar da importância narrativa comparável. “Guess Who’s Coming to Dinner” mostra que parecer simples e não ser mais tão polêmico nada afeta sua qualificação como grande filme.
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Texto bem escrito. Hoje vi o anúncio de um furgão importado e me recordei desta cena do filme “Adivinhe quem vem pro jantar” e vim parar aqui. Surreal essa passagem… https://www.youtube.com/watch?v=7L576AJtjO4