Em “Cabaret”, o ano é 1931 e a República de Weimar vive seus últimos dias. Brian Roberts (Michael York) é recém-chegado no país e acaba encontrando um lar na pensão onde Sally Bowles (Liza Minnelli) mora. Os dois não poderiam ser mais diferentes: ele é um tímido acadêmico em busca de seu doutorado e ela, uma agitada dançarina de cabaré sonhando em ser atriz de cinema. As diferenças não impedem que os dois se envolvam e eles logo engatam em um relacionamento de jovialidade e aventura enquanto o resto do país aos poucos cai nas mãos de uma influência política poderosa.
Até pouco tempo atrás, achava que “Cabaret”era um filme totalmente focado no estabelecimento do título, o que faz todo o sentido como cenário para um musical. Lá, as pessoas se reúnem para assistir a espetáculos de canção e dança dos mais variados tipos com um toque de sensualidade e erotismo em cada apresentação. É um prato cheio para Bob Fosse, o diretor e coreógrafo desta obra. Seu trabalho como um todo possui a característica inconfundível de usar o corpo de seus dançarinos e dançarinas como a ferramenta principal de suas coreografias. É óbvio, considerando que se trata de dança, mas não tanto quando se vê o próprio Fosse aplicando seu estilo quase erótico na prática. Centrar a história num cabaré possibilita que a sensualidade exacerbada do diretor seja ainda mais evidente quando o elenco toma o palco vez após vez em um número impressionante após o outro. E não é só isso, esta é uma obra que também valoriza o que acontece no plano de fundo. Há bastante história por trás de todo o espetáculo.
Por um lado, não há do que reclamar de todo o lado musical da experiência. Bob Fosse trabalha com um material que combina totalmente com ele e o resultado é como um time jogando em casa. Uma casa de shows com mulheres seminuas — para os padrões da época —colocando as pernas para cima e soltando a voz é aquilo do que os sonhos do diretor são feitos. No cabaré, tudo é bonito. A cantora é bonita. Até mesmo a orquestra é bonita. Para alguém que usa o movimento dos corpos como símbolo elegante de sexualidade sem nunca sequer flertar com um tom vulgar, falta só uma história decente e boas canções para completar o pacote. É isso que se encontrou em “Cabaret”, musical da Broadway de 1966. Mais ou menos, na verdade. Vários elementos foram emprestados e vários outros foram feitos especialmente para a adaptação no cinema.
De qualquer forma, o que importa é que todos os números de “Cabaret”são executados com maestria. Começa pela combinação de composições e letras evocando perfeitamente o espírito boêmio de entrar num bar, se divertir com pares de pernas dançantes e falar algumas besteiras. Acima de tudo, nasce a atmosfera de sexualidade sem necessariamente colocar peitos para balançar. Pornografia e exposição não são o negócio do cabaré nem sua pretensão de entretenimento. O que o espectador encontra são danças nem sempre supercomplexas, nem de produção magnífica. Há um palco pequeno, algumas mesas no ambiente escuro da platéia e gente fazendo seu melhor dentro das próprias limitações de figurino, cenário e escala. Mas que não haja confusão: nada disso significa limitação de orçamento. A intenção de Bob Fosse está longe de algo megalomaníaco como o último número de “An American in Paris“.
E não vou entrar no clichê de menos ser mais porque não se trata de uma decisão de trabalhar bem poucos recursos. Trata-se de manter fidelidade ao contexto da história e utilizar o espaço que um cabaré de verdade usaria — o filme todo foi gravado na Alemanha Ocidental, com boa parte sendo em locação. O que pode parecer apenas um detalhe de produção numa primeira olhada é, na verdade, uma característica que os números musicais incorporam na própria essência das coreografias. É um palquinho humilde, sim, mas em “Cabaret”se faz o melhor possível com esse pouco.
E não é preciso muito com Liza Minelli e Joel Grey no elenco. O segundo assume o papel de mestre de cerimônias do lugar e estrela seus próprios números musicais com outras dançarinas em várias ocasiões, mantendo o patamar alto de competência da atriz principal e até mesmo dividindo palco com ela algumas vezes. É uma ótima performance para um coadjuvante, uma também que não se compara ao grandioso papel de Minnelli, vale dizer. Ela está imbatível, sem mais. Desde o primeiro momento em que ela entreabre a porta da pensão e coloca seus dois grandes olhos à vista já é possível se sentir encantado — ou afetado, no mínimo — pela energia que transborda de sua presença e de cada um de seus atos, das palavras ditas que ilustram sua filosofia bizarra até os pequenos atos. Tudo isso tem seus ápices, é claro, quando Sally Bowles está no palco. Nestes momentos, caso tenha ficado alguma dúvida sobre a simplicidade do ambiente de cabaré, fica perfeitamente claro que milagres acontecem com artistas competentes. Tudo que Liza Minnelli precisa para entregar o melhor número do filme inteiro é uma cadeira.
Este lado musical pode ser considerado como uma das partes mais importantes da experiência, mas não é a única. Como exemplo, vale lembrar de “Gigi” o último musical que vi antes desse. No geral, não se pode reclamar de nenhum número musical da história porque todas as composições são agradáveis e bem executadas, qualidades que não podem ser aplicadas ao enredo. O resultado é uma experiência desigual, com um dos pilares da experiência sendo evidentemente inferior ao outro. Nada do que acontece com “Cabaret”, pois o mesmo talento mostrado por Minnelli nas músicas pode ser visto também em sua personalidade singular, a qual é essencial para o sucesso da trama. Ela é uma estrela ou, ao menos, sonha em ser uma, ocupando apenas um posto de artista de quinta categoria dentro de seu universo. No cabaré, ela vive o sonho do hedonismo: champanhe, festa, alegria, beleza e todos os ingredientes da luxúria; enquanto fora dele, há os encontros sexuais frustrados, os sonhos inalcançados e a fragilidade verdadeira por trás da mentira.
Tudo isso existe enquanto uma outra subtrama relacionada à ascensão do nazismo na Alemanha acontece, que nunca é abordada diretamente como um fator primário da história nem fica de fora como um extra contextual. Ele serve como complemento à trama principal e, em menor escala, tem seu próprio desenvolvimento, também simbolizando como a vida acontece independentemente da forma como se vive, caçando prazer ou amor ou sucesso. Essas outras formas, por sua vez, são trabalhadas com dois personagens proeminentes que sequer foram abordados aqui, mas contribuem muito para que o filme seja entretenimento com substância. Toda essa soma é mais que o bastante para preencher o vazio de “Gigi” em um de seus pilares, por exemplo, e fazer de “Cabaret” um dos grandes musicais do cinema americano.