Todo mundo tem aquela profissão que dá nos nervos. Não é nada contra quem trabalha nela, estas pessoas apenas correm atrás de seu ganha pão. Mas às vezes o cargo faz uma veia no pescoço chegar perigosamente perto de estourar. Vendedores de telemarketing, por exemplo, são alvos frequentes da fúria de quem atende o telefone achando que é algum assunto sério. Adicione um telefone fixo na jogada e, pronto, eis a receita para tirar alguém do sério. Em terras americanas, as pequenas escoteiras vendendo biscoitos de porta em porta podem ser candidatas boas, mas não é delas que “Glengarry Glen Ross” fala. Os protagonistas são corretores de imóveis desesperados por uma venda.
Como o filme mostra, o fator incômodo não é tanto a profissão em si, e sim o estado em que seus funcionários se encontram. De todos eles, apenas Rick Roma (Al Pacino) está se dando bem nas vendas. O resto está sentindo o colarinho cada vez mais apertado pela falta de negócios fechados. E quando Blake (Alec Baldwin), um motivador à base da brutalidade, dá as caras com ameaças de demissão, a situação só piora. A pressão e a competitividade deste grupo são elevadas ao máximo em um mercado que exige resultados acima de qualquer coisa.
Numa nota completamente aleatória, mas que sinto a necessidade de desabafar, devo dizer que sempre achei que “Glengarry Glen Ross” fosse o nome da corretora de imóveis onde os personagens trabalham. Pensava que fosse como “Sterling Cooper”, um nome composto pelo sobrenome dos sócios. Não, este filme não tem o mesmo luxo de “Mad Men” nem em seu título. Por outro lado, não consegui deixar de pensar no seriado ao me deparar com um contexto semelhante: engravatados tentando transformar água em vinho para subir na vida. Ambas as obras exploram temas de ambição, corporativismo, competitividade e sucesso. Enquanto o seriado imprime um glamour inerente na publicidade e propaganda, glorificando a profissão e deixando as críticas em cima dos métodos de alguns indivíduos, não há glória nenhuma nos atos dos corretores de imóveis. Os ternos não são escovados, estão ali como requisitos de etiqueta. Ambição e competitividade significam pisar nos outros, se houver oportunidade. Demonstrações de mau caráter são presenciadas com certa frequência.
Não é o ambiente de trabalho mais agradável de todos e nem deve ser. “Glengarry Glen Ross” é tão bom justamente porque conseguem criar um ambiente incrivelmente problemático partindo de um ponto comum, como uma empresa que incentiva a competição interna. Numa visão extrema, o capitalismo abre as portas para a exploração do ser humano por ele mesmo e incita a concorrência inescrupulosa como um mandamento. A magnitude desta mesma dinâmica exagerada é conservada e aplicada num ambiente muito menor, com cada pessoa carregando nos ombros a pressão do sucesso. Eventualmente, é claro que as coisas se complicam. Se vender terrenos fosse fácil, os funcionários não estariam tomando um esporro homérico.
Coloque uma pessoa sob pressão para fazê-la revelar quem realmente é. Coloque quatro pessoas sob pressão e admire a diversidade do caráter humano. O ambiente problemático, sem charme e agressivo funciona perfeitamente para ver isso em atividade e, consequentemente, explorar o potencial de personagens bem escritos. Alec Baldwin, por exemplo, está em cena por poucos minutos e estabelece o conflito central de “Glengarry Glen Ross” em uma sequência só. Ninguém pega o telefone na mão por paixão de vender, é apenas o peso da obrigação que leva gente como George Aaronow (Alan Arkin) e Dave Moss (Ed Harris) adiante. O primeiro se culpa pelo fracasso nas vendas, o outro aponta o dedo para a primeira coisa que se mexer. Mais que diálogos potentes, o roteiro extrai o melhor de seus personagens naquela situação e ainda vai além quando faz ânimos em alta colidirem. Entre as explosões de Ed Harris e o jogo duro de Kevin Spacey, interpretando o chefe do escritório, o personagem de Jack Lemmon faz papel de perdedor e o de Al Pacino acerta friamente em sua venda. São contrastes naturais, que mostram a riqueza da escrita e expõem ainda mais o vendedor chato e o vendedor nato, o verdadeiro e o traiçoeiro, dentro de cada um.
Os retratos são tão ricos e bem interpretados que cheguei num nível de intimidade, se posso dizer, em que tinha opiniões bem pessoais sobre cada um. Assistia a uma cena e pensava “Lá vem o cretino de novo” ou “Será que ele não tem o mínimo amor próprio para agir assim?”. No entanto, não são todos que passam a impressão positiva de um Al Pacino entrando debaixo da pele de seus cliente antes de fechar a venda, dando uma de psicólogo e dissecando sentimentos até saber a hora de fazer uma proposta. Ed Harris está muito bem nos momentos de raiva, os quais encaixam com sua comum persona de alguém pavio curto, porém não consegui engolir totalmente que ele era mais do que alguém descontrolado. Ele não tinha um ar de homem de negócios ou manipulador, as palavras que ele dizia não pareciam dele. De todas as escolhas de elenco, a dele foi a única que erra o alvo.
Outro ponto incômodo foi uma falta de sensibilidade por parte do roteiro na hora de caracterizar cada personagem nestes mesmos momentos de raiva. Exclusivamente nestas ocasiões, senti que a manifestação de fúria de Shelley Levene, um fracassado, era incrivelmente similar àquela do chefe do escritório, um burocrata frio e mandão que pegou carona com parentes para subir de vida. Eles não tem nada a ver, mas pareciam muito parecidos nestas horas. É como quando um amigo meu escreveu um diálogo entre dois personagens que falavam com a mesma voz. Eu não conseguia identificar individualidade nas palavras de cada um, apenas via meu amigo usando seu próprio vocabulário nos dois lados da conversa. O único diferencial que aliviou isso foram as atuações, afinal de contas não há como comparar as exaltações de Pacino com as de qualquer outro ator.
Baseado numa peça de teatro escrita por David Mamet, “Glengarry Glen Ross” combina o esforço de atores talentosos com personagens cujo desenvolvimento foi notavelmente concebido em consonância total com a premissa. Existem deslizes aqui e ali, sim, mas ainda é uma experiência intensa por levar os personagens ao limite usando um cenário relativamente popular. Claro, Alec Baldwin não entra em todas as lojas dizendo que as únicas opções são resultados ou demissão. Todavia, não é difícil encontrar gente que sofre para bater uma meta mensal ou compete com colegas de profissão para vender mais. É a hipérbole do capitalismo exacerbado numa história fácil de se relacionar.