Quando se fala em Akira Kurosawa, uma coisa vem de imediato à mente: samurais. Assim como Michael Bay é associado a filmes explosivos e agitados, o diretor japonês é lembrado principalmente por seus trabalhos ambientados no Japão Feudal, a era dos samurais. “Os Sete Samurais” e “Fortaleza Escondida” inclusive chegaram a ser reimaginados no cinema americano como os blockbusters “Sete Homens e um Destino” e “Star Wars“. Entretanto, esse tipo de história não foi o único em sua carreira. “Ikiru” mostra que ele também se dedicou a contos de seres humanos em conflitos pessoais, similares ao trabalho de Yasujirô Ozu sobre a banalidade da vida. Certamente diferente de códigos de honra e batalhas de katana.
Kanji Watanabe (Takashi Shimura) está morto faz tempo, mas ainda não sabe. Sua vida gira em torno de seu tedioso e imutável trabalho para a prefeitura da cidade. Carimbar papéis e se esconder atrás do emaranhado de complicações chamado burocracia resumem seu cotidiano. Se existe algo a ser feito pela população, sempre é tarefa para outro departamento público. O repasse de responsabilidade continua até Watanabe descobrir um câncer no estômago, o que o leva a decidir que chegou a hora de viver de verdade e buscar algo significativo nela.
Quando fui apresentado ao trabalho de Akira Kurosawa, fiquei impressionado ao ver que ele possui um repertório mais amplo que os citados filmes de samurai. São estes últimos os mencionados nas listas de “melhores”, seja de filmes japoneses, do próprio Kurosawa e até estrangeiros. Eles pareciam legais, mas os que realmente me chamaram a atenção foram os outros como “Ikiru”. De alguma forma, eles sugeriam uma singularidade, um esforço extra sustentado por paixão de alguém que foge de seu trabalho usual para focar em algo diferente. Por mais que o resultado final não esteja a par de outros filmes melhores dele ou de minha empolgação inicial, é notável o cuidado com uma abordagem diferenciada. Existem acertos demais para este ser um esforço pouco inspirado.
“Ikiru” pode ser dividido em duas partes: uma em que a melancolia reina absoluta e outra em que as discussões sociais surgem. A primeira conta com Takashi Shimura como o representante de toda emoção e cenas potentes. Suas poucas palavras são uma oportunidade de mostrar sua aptidão em atuar com seu corpo. Expressões faciais e movimentos no lugar de falas; a ausência de palavras como o traço mais característico e fidedigno a um personagem em conflito. Viver é um eterno processo de aprendizados e reaprendizados, constituído pela recorrente substituição e evolução de ideais e comportamentos. No entanto, é muito possível que este processo dinâmico fique estagnado. Há 30 anos, o protagonista está nesse estágio de paralisação. Como voltar a viver? Se ele tivesse alguma idéia a respeito disso, não duvido que a colocaria em prática. No mínimo, verbalizaria antes de tomar uma atitude. Porém não se pode falar de algo que sequer existe na mente, é necessário uma fagulha esteja ali, por menor que seja. Shimura representa em silêncios mortais e gaguejos receosos, em movimentos inseguros e expressões de vazio existencial, o conflito entre o Sr. Watanabe e ele mesmo, a contestação de valores pessoais protagonizada por alguém que exala sofrimento por não saber como progredir.
A segunda parte abre espaço para a trama explorar enfoques novos sobre os temas de antes. Se angústia e tormento definiram a primeira parte, uma discussão sobre os eventos apresentados anteriormente toma conta num segundo momento. “Ikiru” passa a se destacar pelo seu enredo e como ele transforma a prévia predominância de tom em conteúdo para uma crítica social árdua. O escopo aumenta, passa das decepções individuais a uma exposição de atitudes contraditórias, as mesmas que foram evitadas pelo protagonista. Serve perfeitamente como uma observação afiada sobre a hipocrisia humana e como uma virada bem vinda para uma trama que já sofria de monotonia.
O maior pecado de “Ikiru” está justamente nesse ponto. Não tenho problemas com histórias lentas, “Era uma Vez em Tóquio” está aí para provar que ser devagar não é sinônimo de maçante. Conta-se uma história sustentada pelo retrato despretensioso da realidade dos personagens, a qual é construída e aprofundada aos poucos pela sensibilidade do diretor a sutilezas. A obra de Kurosawa, por outro lado, parece focar exageradamente no sofrimento de seu personagem. Foi a atuação de Takashi Shimura que manteve meu interesse pelo que estava sendo mostrado, não os eventos em si. A condição do protagonista se estabelece logo no começo, assim tornando as subsequentes explorações sobre os mesmos sentimentos na perpetuação de uma entonação. Alguns momentos se destacam e automaticamente marcam a memória com sua execução sublime, porém não estão em número o suficiente para variar o ritmo. Logo, o filme fica muito lento e sugere mais de uma vez que estagnou num estágio, assim como seu protagonista esteve preso a sua vida inerte. Uma virada na história até traz uma mudança valiosa de abordagem, mas não a tempo de fazer o espectador esquecer do quão cansativa a experiência chegou a ser em certos momentos.
Talvez a perspectiva de uma obra diferente das demais tenha enchido meus olhos demais. Mesmo assim, não posso dizer que fiquei insatisfeito com “Ikiru”. É uma experiência intensa com um conflito bem interpretado da condição humana; seja na esfera, por Takashi Shimura, ou numa mais ampla, da qual o roteiro se encarrega de representar com um grupo de personagens. É uma falta de variação, ou talvez de progressão, na condição do protagonista que deixam este longa cansativo demais em certos momentos. De qualquer forma, permanece como uma recomendação para os interessados no outro lado da carreira de Akira Kurosawa.