Todos os dias, sem exceção, seguimos com nossa vida sem notar uma porção de coisas que estão bem debaixo de nossos narizes. O cérebro é um órgão poderoso, sem dúvida, mas nem ele tem tanto poder para permitir que vejamos tudo o que se enxerga. Tirando as trivialidades da vida urbana e sua infinidade de sons, há centenas de anos de história em cada bloco de pedra na calçada. Fascinado por esse lado esquecido do cotidiano, Martin Scorsese fez “Gangs of New York”: uma história ligada à infância do diretor em Nova York, ainda que com uma centena de anos separando as duas épocas.
A história se passa na Nova York do Século 19, uma época em que a imigração trazia estrangeiros aos milhares. Italianos, chineses, irlandeses, poloneses… todos vinham pela promessa de fortuna e prosperidade numa terra que ainda não havia sido dominada. Isso não impede que o Five Points, um pequeno bairro, seja o trono de William Cutting (Daniel Day-Lewis), também conhecido como Açougueiro. Anos antes, William e uma multidão de nativos enfrentaram outra multidão de imigrantes pelo poder, resultando na morte do Padre Vallon, líder da oposição e pai de Amsterdam Vallon (Leonardo DiCaprio). Tendo visto seu pai morrer na sua frente, Amsterdam jura vingança e volta ao Five Points anos depois para acertar as contas.
Pensando um pouco, não é muito difícil enxergar o porquê de tanto fascínio pela história americana. Primeiramente, Martin Scorsese têm uma conhecida tendência de fazer filmes ligados à sua própria história de vida; com a cidade de Nova York sendo palco de muitas de suas histórias. “Goodfellas” e “Mean Streets”, por exemplo, ambos falam da máfia italiana em solo americano. Em segundo lugar, alguns podem ter notado que parte de premissa e muito de sua apresentação na história remetem a outro filme popular: “The Warriors“, de 1979. Embora existam várias diferenças cruciais, permanece a idéia de dividir a cidade em gangues, quando supostamente o sistema deveria organizar tudo. Walter Hill enxergou isso na época, e aqui, em “Gangs of New York”, Scorsese faz o mesmo, por todos os prós e contras que resultem disso.
Sendo um projeto milionário, uma visão apaixonada como a do diretor tem a chance de ser trazida à vida em todas as cores que o verde do dinheiro pode comprar. A melhor parte disso, curiosamente, não é tanto a ambientação e caracterização daquela época, mas o elenco. Para falar a verdade, a parte Daniel Day-Lewis do elenco. É bem sabido que ele é o ator mais premiado no Oscar e até o melhor em atividade, mas não acho que por isso os elogios devam ser contidos. Em “The Revenant“, o personagem de Tom Hardy era tão bem trabalhado pelo roteiro que a atuação ganhou atenção, mesmo não sendo lá tão boa. Aqui acontece o contrário: Day-Lewis está tão bem em seu papel que gostamos mais de seu personagem nem tão legal assim. O Açougueiro cresce com o trabalho do ator, indo de um bigode curvado e roupas de época a um homem de obsessão maquiada, que não mostra mais de si porque o poder em suas mãos economiza o esforço. Outro ponto extremamente positivo é a recriação da Nova York de 1800 e alguns anos; das tábuas podres ao cocô na rua, das prostitutas suadas até as tavernas imundas. Construídos nos estúdios Cinecittà — onde Federico Fellini fez seus filmes — o set de quase 1 milha de extensão é uma criação realmente invejável; uma conquista tão ambiciosa que o resultado é comparável aos universos inteiros criados em videogames, só que reais.
Novamente seguindo numa linha similar a “The Revenant“, “Gangs of New York” ostenta produção e aspectos técnicos executados cuidadosamente, enquanto a história fica um pouco de lado. Esta última inclusive tem algumas similaridades quando seu valor principal é a vingança; o protagonista quer retaliação contra quem assassinou um membro de sua família — em um é o pai, em outro o filho e em ambos o protagonista é Leonardo DiCaprio. O problema é que nem trama, nem aspectos técnicos têm a mesma competência aqui. Desde a primeira cena, parece que Scorsese está fascinado demais com o universo apresentado para cogitar usar as imagens como mais do que simples ilustração. Em termos estéticos, realmente não há nada para colocar defeito, ao passo que a função de contar a história com imagens é negligenciada. Mais de uma vez as câmeras fazem um plano sequência para mostrar a imensidão e detalhe dos ambientes, continuando depois que a ação já acabou para mostrar tudo o que estava em volta. Nem acho que seja um problema de roteiro, a falha está mais na direção. Existem diversos temas não desenvolvidos na história; entre eles o declínio por arrogância, a hesitação do convicto e como os personagens mudam o mundo ao redor de si para além de suas ações diretas — o que está ligado a uma noção paralela de que o tempo passa sempre, em tempos simples ou de luta. Todos são sugeridos ou tocados levemente em algum momento, embora nunca desenvolvidos.
Fica claro que o escopo aqui era ser Épico, pegar um momento histórico e explorar o mundo de temas, histórias e figuras inseridos ali; e sob um ponto de vista, é isso que Scorsese faz, mesmo que não muito bem. Ainda é um filme com bons momentos na história, ao menos um personagem icônico e uma ambientação sem igual — a qual também se estende à caracterização dos personagens. O porém é que “Gangs of New York” parece estar mais centrado em visuais do que em conteúdo, contando com um diretor tão apaixonado pelo que as imagens mostram que acaba esquecendo que elas deveriam falar também.