Dizem que a crítica de cinema está morrendo. E talvez tenham um pouco de razão. A era da tecnologia tornou possível uma infinidade de coisas que antes eram privilégios de poucos. Aspirantes à cineasta podem muito bem usar as câmeras potentes de seus celulares para gravar o projeto de suas vidas e em pouco tempo disponibilizar para milhões de pessoas. Enquanto isso, o resto do mundo responde com uma voz que nunca teve antes. Em nenhum momento da história foi tão fácil dizer o que se pensa sobre um filme ou sobre assunto nenhum. Um aparelho com um teclado e acesso à internet já quebra o galho e torna qualquer pessoa uma formadora de opinião em potencial.
Onde entra a crítica de cinema nisso tudo? Por décadas Roger Ebert, Gene Siskel, André Bazin e Pauline Kael moveram leitores com suas opiniões e ajudaram a construir o cinema como o conhecemos hoje. No entanto, há quem diga que nem em seu auge estes críticos venderam ingressos ou minaram o sucesso financeiro dos filmes analisados. “Batman v Superman: Dawn of Justice“, em especial, botou novamente em questão a credibilidade de críticos no mundo todo. Não faltou gente para dizer que a crítica não sabe do que fala e que foi feita para outro tipo de cinema — como se houvesse uma divisão clara. Qual a função de encher um arquivo com cerca de 1000 palavras então? Aparentemente há cada vez menos interessados, muitos destes favorecendo opiniões em vídeo sobre o clássico texto. “Life Itself” mostra que talvez haja esperança.
“Life Itself” é mais do que uma biografia, mais que um documentário sobre um dos maiores críticos da história, é o legado de um homem apaixonado pelo que fazia. Muitos podem se deparar com este longa e pensar: “Qual a graça da vida de um crítico de cinema? Não sei o que há de interessante em ver filmes, passar horas escrevendo e alimentar o sedentarismo”. Aos preocupados com isso digo que Roger Ebert fazia caminhadas diárias de pelo menos 10000 passos e escreveu belas palavras sobre algo perto de 6000 filmes. Como as melhores obras fazem, “Life Itself” transforma este tédio aparente em algo nada menos que interessante, se não inspirador para uma geração de críticos e amantes de cinema.
É contada a trajetória de Ebert desde muito antes da frase “Two Thumbs Up” sonhar em ser relevante, quando ele não passava do filho de um pai eletricista e uma mãe bibliotecária. Como toda biografia, a história caminha em direção ao futuro; mostrando como o crítico foi chegando mais perto do gigante conhecido hoje e ocasionalmente alternando com momentos de sua vida tardia. Enquanto o filme era feito, Ebert lidava com outra investida do câncer descoberto em 2002 — sua mandíbula inferior havia sido removida anos antes. Ele não falava, não comia, mal andava e nunca deixou isso ser motivo para negligenciar suas contribuições. Sua saúde precária não tirou ele da ativa e sua participação em “Life Itself” mostra exatamente isso. Ebert está claramente debilitado desde o começo, mas suas mãos permaneceram saudáveis até o fim; ele continuou respondendo as perguntas do diretor Steve James, escrevendo o que a voz virtual em seu laptop deveria dizer e participando como podia.
Histórias sobre gente que conquistou muito na vida não são exatamente uma novidade. “Ray” e “Love & Mercy” contam a história de músicos mundialmente aclamados, “Pumping Iron” sobre Arnold Schwarzenegger e outros grandes fisiculturistas. O que faz estes filmes funcionarem? Com certeza não é listar características ou conquistas da pessoa em questão. Essa é a função do Wikipédia. O espectador quer se conectar com aquela vida, sentir-se na pele de um gigante por um segundo que seja; nada muito diferente do que acontece na ficção, com o detalhe de que o protagonista é real. Ver todo aquele sucesso como um documento da realidade me inspira, mostra que o sucesso está ao alcance. “Life Itself” me toca não apenas por mostrar alguém que fazia bem o que faço — escrever textos e torcer pra alguém ler — mas também por ser um exemplo para toda a crítica cinematográfica num geral.
Roger Ebert morreu durante as filmagens em 2013; seu trabalho, por outro lado, é eterno. A perseverança em continuar trabalhando apesar das dificuldades e seu trabalho ao longo de seis décadas constituem um estandarte respeitável para todo crítico. É uma inspiração válida e, acima de tudo, sincera do que é escrever sobre algo apaixonante como cinema. Mas quanto disso está no filme e quanto não está? Não divago gratuitamente sobre algo que me soa importante. A obra do diretor Steve James conta os detalhes da vida do crítico sem aparentemente deixar nada relevante de fora. Seu primeiro contato com o jornalismo, o Pulitzer, a parceria icônica com Gene Siskel e muito de sua vida pessoal estão ali na história. Entretanto, há uma razão porque as pessoas não choram todo fim de ano com as retrospectivas de jornal. Escolher o que colocar, quando colocar e dar um sentido ao conteúdo tem seu efeito; são evocados sentimentos, idéias, reflexões e opiniões, como outros bons longas fazem. Esse é o poder de uma história bem contada, ir além do óbvio e mudar o mundo. Um espectador de cada vez.
Não digo com isso que, de alguma forma, glorificam a ocupação de crítico de cinema ou a figura de Roger Ebert. Também não direi que fatos falam por si, pois se falassem ninguém iria assistir a “Life Itself”. A história contada não pinta o famoso crítico como um cara legal e muito menos um santo. Ele tinha seus defeitos e muita gente não gostava dele, apesar de sua fama. Este filme conta a vida como ela é. E o que é a vida de Ebert? Ele não é dono da verdade, destruidor da arte ou um alguém que descontava sua frustração no trabalho alheio. Ele é um amigo do Cinema, alguém que ama o que faz o bastante para compartilhar com o mundo. “Life Itself” me faz acreditar que não é de graça que o sucesso alcança aqueles que são verdadeiros naquilo que fazem. Então, não. A crítica de cinema não está morta.