É bem comum se deparar com algum amigo indo ao cinema para se divertir, fugir um pouco da rotina numa sala escura com um telão à frente. Enquanto isso vale para incontáveis obras – não só as comerciais – não diria que “Leaving Las Vegas” entra nessa categoria. Mesmo sendo um dos melhores filmes já feitos, nem de longe pode ser chamado de divertido. Dificilmente alguém chegará ao fim se sentindo alegre. Também não é uma experiência exatamente agradável, embora seja totalmente fiel ao seu material. Este longa representa o cinema em sua melhor forma, transmitindo os sentimentos que alimentam a história sem priorizar o que agrada a maioria.
Ben Sanderson (Nicolas Cage) é um roteirista de Hollywood que aprecia um copo de bebida. Muito. Desde que sua esposa o deixou ele entrou num caminho de decadência com litros de álcool de companhia, o que lhe custa o emprego e boa parte de sua dignidade. Sua decisão? Ir para Las Vegas e se embebedar até que o dinheiro acabe ou até que ele morra. Plano que até seria direto ao ponto se uma prostituta não tivesse aparecido em sua vida para compartilhar seu sofrimento.
Esta não é uma história convencional. Se a sinopse dá a entender isso, de alguma forma, digo que não. Não falo também de uma narrativa completamente discrepante do comum, pois os eventos são contados de uma maneira bem tradicional. Onde “Leaving Las Vegas” se difere da maioria é em seu conteúdo, na forma como se distancia das convenções e clichês. Las Vegas parece um lugar de glamour e sofisticação em “Se Beber, Não Case” e “Casino“? Pense novamente. Tomando como exemplo o American Way of Life – o estilo de vida americano – há exemplos de obras que o reproduzem e outras que claramente opõe. “It’s a Wonderful Life” é, talvez, a expressão mais clara dessa visão, ao passo que “Midnight Cowboy” mostra o lado negro desta filosofia colorida e cheia de alegria. “Leaving Las Vegas” sem dúvida está no time que enxerga o lado negro da coisa; tanto que não é exagero algum dizer que este é o filme mais deprimente que vi na vida. Não porque falta qualidade a ponto de me entristecer, e sim pela história ilustrar o ser humano no patamar mais baixo de sua existência. Até onde vai o fundo do poço? É difícil dizer, mas este longa dá uma boa idéia.
O sentimento de derrota é um dos elementos centrais para a história. Pontos de virada quase sempre são direcionados para o pior, superando vez após vez o que aparentemente não poderia ser pior. É uma espiral de desgraça e vergonha alheia, de coisas e pessoas comuns se enterrando em suas próprias decisões infelizes. Talvez a obra seja tão potente justamente por tudo ser tão palpável. Ao contrário do Noir – que criou um universo próprio em cima de seu característico pessimismo – esta obra tem um toque de realidade em tudo o que se propõe. Uma prostituta falar do gosto de esperma que sente todos os dias não é uma situação fora do alcance do cotidiano. Um bêbado se enxergar como um algumas coisas legais em uma existência miserável também é mais comum do que costumam admitir. A direção e a narrativa apoiam esta idéia perfeitamente. A história não apela para imagens e sons bizarros para transmitir seu conteúdo emocional, pelo contrário, a direção mostra um caráter bem tradicional quando usa músicas populares e jazz na trilha sonora. Mike Figgis, o diretor, ainda merece crédito por fazer um excelente trabalho com estas supostas limitações que sua abordagem estabelece. Ângulos bem pensados frequentemente complementam as imagens sugeridas por um roteiro bem escrito, que consegue se manter imprevisível apesar da eterna sombra de que tudo dará errado. Melhor ainda, tudo isso é trazido à vida por uma dupla de grandes interpretações: Nicolas Cage no papel que lhe deu o Oscar, muito diferente do estereótipo que seus trabalhos recentes criaram; e Elisabeth Shue como uma mulher delicada e sutil numa ocupação que pouco tem a ver com sua personalidade.
Mas de tudo isso, o que me faz realmente reconhecer “Leaving Las Vegas” como um filme extraordinário é sua capacidade de causar impacto com sua história. Mais do que despertar julgamentos – avaliar uma decisão de roteiro, por exemplo – e mais do que despertar interesse pelo desenrolar da trama, este é um filme que faz o espectador sentir. Assistir a esta obra é tipo ler uma notícia de que alguém foi estuprado. Além da raiva, é um acontecimento que simplesmente… deprime. Mas este é um delito hediondo, universalmente considerado ruim. E quanto ao bêbado? Poucos dão a mínima para ele, ainda que encontrem um todos os dias, e simplesmente ignoram sua existência. A trama não só joga a merda no ventilador, ela espalha em cima do lençol para mostrar como gruda. São coisas comuns, que todo espectador já viu em algum lugar, acompanhadas de um sentimento de derrota absoluta; algo tão poderoso que me fazia sentir mal quando eu via aquela situação desgraçada. É de se esperar que um alcoólatra passe vergonha cortejando uma mulher, agora o que há de miserável em sexo oral? Numa música animada? Numa trilha sonora cheia de jazz? A força do argumento está em todo o lugar, é um sentimento universal de degradação que não deixa de aparecer só porque o conteúdo costuma ser associado a algo positivo.
Assim como grande parte das pessoas, não sou muito fã de ficar mal. No entanto, não há coisa melhor do que se sentir envolvido com algo, nada como uma história que instiga o sentimental, além do racional. Talvez “Leaving Las Vegas” não atinja a todos da mesma forma. Com certeza não vai entreter quase ninguém de maneira convencional. Mas só pelo fato de arrastar quem assiste para dentro de seu universo, sem necessariamente perder contato com a realidade, acredito que valha a pena. É uma experiência única que compensa umas horas fora da zona de conforto.