Pelo menos uma vez nada vida, toda pessoa já ouviu falar da lenda americana, a Harley-Davidson. A motocicleta centenária simboliza os valores do país, principalmente a liberdade; permite ao seu piloto esquecer da vida e ir em direção ao pôr do sol sem destino planejado. Mas por trás de todo esse glamour há uma subcultura não tão elegante, embora muito envolvente. “Sons of Anarchy” explora o cotidiano de gente que realmente considera motocicletas um estilo de vida, que anda de moto para comprar pão ou cometer um crime. Kurt Sutter, o criador do seriado, também trabalhou em outra série do canal FX, “The Shield“. Ambas abordam temas similares, mas Sutter foi mais longe para ser fiel ao seu material. Ele passou um tempo com um motoclube fora da lei e, curiosamente, recrutou quatro pessoas de um dos maiores motoclubes do planeta, o Hells Angels.
Este seriado acompanha a vida dos membros do motoclube Sons of Anarchy e segue os eventos da vida pessoal de seu vice-presidente, Jackson “Jax” Teller (Charlie Hunnam). Para seus membros, o clube é uma prioridade, uma família e um aspecto central de suas vidas. Pessoas sem nenhum laço de sangue tratam-se como irmãos próximos, gente que faria qualquer coisa pelo seu irmão de clube. Mas quando o peso de suas decisões e laços de sangue entram no caminho de Jax, ele faz o possível para equilibrar os papéis importantes em sua vida: marido, membro do clube e pai.
Uma experiência alimentada pela cultura sobre duas rodas.
“Sons of Anarchy” segue vagamente os passos de filmes de cultura motociclista, como o clássico “Easy Rider” de 1969. Existem várias semelhanças evidentes logo de cara, além da parte óbvia de ambos falarem de motos. Quem viu o filme notará uma semelhança forte quando os membros pilotam suas motos ao som do melhor do rock. Além do mais, explora-se a vida de quem praticamente vive em cima de sua Harley. Não posso me dizer especialista nessa cultura motociclista, mas pela minha experiência posso dizer que acertam na fidedignidade. Claro, não me refiro aos crimes e atrocidades cometidas, mas à forma como elementos do clube são representados — hierarquia, irmandade, respeito e rotinas em geral. A dinâmica do clube é apresentada com fidedignidade, longe da ficção óbvia e sem parecer um documentário do Discovery Channel.
Se uma atmosfera cativante foi o objetivo, então acertam precisamente em fazer o espectador se apaixonar por tudo aquilo. Mesmo que coloquem um pá na fantasia de vez em quando. Eventualmente, “Sons of Anarchy” flexibiliza um pouco esses limites ao exagerar na romantização do motoclube. Às vezes a vida é pintada como boa demais do que é realmente. Motoclubes não costumam ter tanto conforto ou uma posição alta na cadeia do crime organizado. Também não vou dizer que sou entendido de crime organizado, mas algumas situações soam um tanto absurdas para qualquer pessoa. Uma dúzia de motoqueiros se safar contra organizações criminosas maiores é pouco palpável, ainda menos quando estas não toleram desaforos.
Por boa parte da série, o modelo fiel estabelecido no começo funciona muito bem. É muito interessante ver como assuntos importantes são levados para a mesa de votação em vez de decididos individualmente. O elenco realmente leva a sério o sentimento de respeito e união entre membros e mostra isso nas atuações. Assim, a cultura do clube vai além de tentar de reproduzir a realidade, é um tema importantíssimo da história. Contudo, mais interessante que seguir regras é ver os personagens quebrá-las por motivos pessoais. Enquanto alguns seguem à risca o regulamento imposto, outros desenvolvem-se ao passar por cima das regras; abraçam e beijam seus parceiros no dia-a-dia para depois dar a fatal facada nas costas. O mesmo acontece com personagens de fora do clube. Ninguém em Charming, pequena cidade do norte da Califórnia controlada pelo Sons of Anarchy, está ileso das maquinações do clube.
Bom na hora de criar histórias, não tanto em concluí-las.
Quase todos arcos de história são extremamente cativantes inicialmente, seja lá qual a proposta — agitado, dramático, filosófico. Kurt Sutter mostra-se bem capaz de criar histórias com alto potencial de gerar intrigas. Nem tanto quando é hora de concluí-las satisfatoriamente. Alguns detalhes menores são, por vezes, completamente ignoradas; outros arcos acabam perdendo presença ao longo das temporadas; enquanto outros são simplesmente mal concluídos. O pai de Jax, John Teller, é posto como um dos maiores “fantasmas” da história no começo de tudo. Sua enorme sombra é projetada de uma forma bem planejada: as circunstâncias de sua morte são suspeitas e sua própria personalidade é um mistério. Um manuscrito com sua filosofia de vida acaba encontrado por Jax, que então passa a repensar seus valores. Dessa forma, a trama do seriado inteiro é alavancada. Quanto mais o protagonista lê sobre seu pai, mais ele questiona Clay Morrow (Ron Perlman), presidente do clube e padrasto. O conflito é plantado, mas não sustenta a força do começo em sua conclusão. Por sorte, este não é um dos casos de arcos esquecidos, apenas mal concluídos. No final de tudo, vários detalhes importantes da vida e morte de John Teller se perdem. Este é apenas um exemplo das vezes em que “Sons of Anarchy” falha. Este arco serve como fundação de temporadas inteiras, personagens matam e morrem apenas para tudo ser esquecido pelo roteiro.
Ainda que alguns arcos sejam decepcionantes em suas conclusões, a maioria ainda é muito bem finalizado. O maior exemplo se encontra no Finale da terceira temporada. Não é só uma questão de final bom, o desenvolvimento inteiro entrega reviravoltas proveitosas. No geral, a qualidade mantida pela série é pouco flutuante, embora seja possível notar diferenças entre temporadas. Cada uma estrutura-se como um arco de cerca de 13 episódios, sendo em torno de 7 no total. Por exemplo, a segunda traz um grupo de racistas extremistas estabelecendo-se em Charming; a terceira envolve uma viagem até a Irlanda e a divisão do motoclube de lá. Felizmente, o problema mencionado antes não aparece nestes arcos de temporada, estes são bem executados. É apenas quando a história se estende para várias temporadas que Sutter se perde.
Seis temporadas ótimas e outra não muito.
Isto é, exceto pela última temporada. Ao longo das seis primeiras, “Sons of Anarchy” traz o melhor do drama pessoal numa cultura motociclística. Houve conteúdo de sobra para preencher os episódios suficientemente, mas o dilema das conclusões insatisfatórias se repete na sétima temporada. Se por um lado o último episódio conclui bem a série, o resto falha em manter a mesma qualidade. Faltou conteúdo para preencher os capítulos, deixando muitos episódios desprovidos de surpresas ou acontecimentos interessantes. Somando isso a decisões óbvias de enredo, CGI de quinta categoria, péssimas escolhas de roteiro e repetição de eventos genéricos, o resultado é a pior de todas as sete temporadas.
Um elenco de personagens peculiares e atores competentes.
Dentre as coisas boas dessa série, a melhor com certeza é o elenco soberbo. Pela trama focar em tantos personagens, poderia-se pensar que pelo menos metade deles seria sem graça. Talvez isso até seja verdade nos primeiros episódios, pois o espectador é introduzido tão bruscamente a muitos personagens. Mas em pouco tempo esse sentimento se dissipa. Todos eventualmente transmitem seu carisma infinito de sua maneira. A relação paternal, por exemplo, tem pelo menos três personagens a representando. Chibs (Tommy Flanagan) é o pai parceiro, mais perto de um amigo do que de uma autoridade; Clay, por outro lado, é o que gosta de ditar leis e dizer como agir; o contrário de Bobby, que transmite o amor que sente por Jax sem esforço. Nenhum personagem passa batido sem tocar o espectador ou, é claro, deixar sua marca na história. O protagonista, Jax Teller, é um personagem imprevisível e inconstante, sendo interessante justamente por esse motivo. Algumas de suas atitudes não fazem muito sentido num primeiro momento. “Por que diabos ele fez aquilo?”, o espectador pode se perguntar, nunca ficando sem resposta. “Sons of Anarchy” faz um trabalho invejável com seu protagonista. Primeiro, dá o choque de um ato brusco, depois conecta isso com seu conflito de tentar ser um bom homem de família e um bom irmão para seus companheiros de clube.
Charlie Hunnam se encaixa perfeitamente como Jax Teller, mesmo com algumas minúcias levemente ridículas — o involuntariamente cômico andar de bandido. Hunnam carrega seu personagem problemático com emoção e energia, o combustível de sua impulsividade. E claro, há também uma exagerada dose de nudez gratuita a quem possa interessar. Além dele, o elenco é outro exemplo de atores que nunca deslancharam no cinema fazendo um bom trabalho. Katey Sagal como Gemma Teller, a mãe de Jax, é outra figura proeminente; tão importante quanto, se não mais, que o próprio protagonista. Várias complicações nascem com seus atos: uma pessoa de coração forte e pouco escrúpulo. Gemma é completamente dedicada a sua família, porém nem sempre sabe como lidar com as adversidades postas entre ela e as coisas que ama. Tal mãe, tal filho. Sagal e Hunnam nos papéis principais são facilmente o melhor que “Sons of Anarchy” oferece em termos de elenco.
Seriado sobre motos que não depende delas para ser eficiente.
Outro dos méritos de “Sons of Anarchy” é sua capacidade de ser boa por si sem depender das motocicletas. O seriado não usa a ostentação das máquinas como muleta e nem precisa disso. Este não é aquele seriado com as motonas bonitas, um “Top Gear” com história. Como dono de uma Harley-Davidson e entusiasta por motos, devo dizer que as cenas com motos e as próprias motos eram o que menos me faziam ter vontade de assistir a série. As motocicletas são todas modificadas para ter visuais similares e, particularmente, não acho tais escolhas de design muito felizes. Mesmo assim, gostar do estilo das motos não importa muito porque elas não são expostas para apreciação. Além disso, a direção das cenas de ação em cima das motos é frequentemente frustrante. As perseguições são frequentemente lentas e pouco empolgantes. Um trem de motos perseguindo alguém é bom apenas em teoria, porque na execução parece que pilotam a incríveis 50km/h. É uma oportunidade perdida, sem dúvida, mas pelo menos prova que a série tem qualidades o bastante para se sustentar sozinha, sem o auxílio do fator do entusiasmo motociclístico.
“Sons of Anarchy” tem várias falhas em sua execução, mas o número de qualidades é muito superior; já é o bastante para posicionar o seriado como um dos melhores da atualidade. Sustentando-se tranquilamente sem o fator das motocicletas, o universo criado por Sutter foi pioneiro no ramo da Televisão. Numa tacada só, uma parte da cultura sobre duas e várias histórias incríveis são apresentadas com sucesso. A história do SAMCRO pode ter acabado por aqui, mas felizmente Kurt Sutter comentou sobre planos de fazer uma série sobre os First 9, os nove membros que fundaram o clube nos Anos 60.
1 comment
Dando um olhar agora, é muito verdade o que você disse. Boa análise.