Entre o fim dos Anos 90 e o começo dos anos 2000, a televisão ainda engatinhava no ramo da produção de seriados. Algumas séries já haviam emplacado anos antes, como “Miami Vice”, “Magnum P.I.” e “Homicide: Life on the Streets”, criando uma legião de fãs no processo. Mas não foi até “The Sopranos” lançar em 1999 que a revolução televisiva começou. Enquanto os seriados previamente lançados eram considerados formas de entretenimento de qualidade, muitos deles não abordavam assuntos maduros, não sendo levados tão a sério. Mesmo após Tony Soprano, a maioria dessas grandes produções bem conceituadas ainda estava nas mãos dos canais de televisão por assinatura premium, aqueles que costumam ser cobrados a parte dos pacotes de TV a Cabo. Contudo, as apostas subiram muito quando “The Shield” foi lançada pela FX em 2002. Usando um orçamento considerado grande para um seriado de TV a cabo simples, muitos pauzinhos foram mexidos para que a série fosse ao ar, incluindo dividir os custos entre dois estúdios diferentes e até cortar orçamento da produção em si.
O plano de fundo trata da dualidade de moral e de procedimento na Polícia, mais especificamente baseando-se nos escândalos verídicos da divisão de polícia Rampart de Los Angeles e sua equipe anti-gangue C*R*A*S*H*. No fim dos Anos 90, uma série de eventos envolvendo corrupção policial foram descobertos, envolvendo principalmente membros da mencionada equipe. Os atos praticados incluíam: brutalidade policial, plantar provas falsas, omissão de provas, incriminação de suspeitos, entre outros. Seguindo essa premissa de perto, “The Shield” conta a história dos membros da Strike Team, uma equipe anti-gangue baseada na própria C*R*A*S*H*. Dentre esses membros, quatro são o destaque principal da série, sendo eles Vic Mackey (Michael Chiklis), Shane Vendrell (Walton Goggins), Curtis Lemansky (Kenny Johnson), e Ronnie Gardocki (David Rees Snell). Assim como a equipe de verdade, a Strike Team comete diversos atos criminosos, mas que frequentemente são ignorados por causa da eficiência da equipe em combater o crime. Quebrando portas, extorquindo pessoas e intimidando quem quer que se coloque no caminho, Mackey e seus comparsas mantém as ruas tranquilas ao se tornar parte delas, combatendo o crime com o próprio crime em uma forma de vigilantismo.
Mas não só de Strike Team a série se sustenta, o elenco é consideravelmente extenso. Além das operações duvidosas da equipe, o trabalho do resto da força policial é explorado, envolvendo diversos detetives e outros policiais da fictícia divisão Farmington. Em especial, dois personagens preenchem boa parte desse tempo não dedicado a Strike Team: os detetives Dutch Wagenbach (Jay Karnes) e Claudette Wyms (CCH Pounder). Além de detetives extremamente competentes, Dutch e Claudette são grandes amigos fora da delegacia; ver os dois trabalhar é interessante, pois suas personalidades são evidentemente diferentes. Enquanto Claudette se mostra como a policial durona e austera, Dutch é aquele indivíduo meio bobo que cai na chacota dos outros frequentemente. Interpretações excelentes da parte dos dois apenas complementam essa relação curiosa, que, por sua vez, infere diretamente na maneira como ambos trabalham, Wyms com sua fibra moral inviolável e Wagenbach com seus raciocínio incomum. Outros membros da divisão que recebem destaque são: Julien Lowe (Michael Jace), um policial novato e fervoroso crente que luta contra sua própria homossexualidade, e David Aceveda (Benito Martinez), o capitão da delegacia de polícia que almeja derrubar Vic tanto quanto quer decolar com sua carreira política. O que torna as coisas interessantes é a exploração mais profunda da Strike Team como seres humanos, ao invés de simples anti-heróis. O trabalho que realizam no desenvolvimento das relações entre membros da equipe é excelente, embora não seja tão explorada de início. As relações de poder, confiança e camaradagem são parte do que tornam esse ângulo de desenvolvimento tão intrigante. A relação de Shane com Vic, em especial, rouba a cena diversas vezes, brincando e manipulando o conceito de moralidade, colocando em jogo qual distorção morais é a menos ruim. Em um mundo cão, não existe mordida criminosa, apenas a gratuita e a necessária.
O foco em tantos personagens é refletido diretamente no número de histórias abordadas, que dá forma à característica mais marcante de “The Shield”. Enquanto a maioria dos seriados do gênero policial costumam ser divididos entre os que resolvem um caso por episódio e os que resolvem um caso por temporada, “The Shield” quebra um pouco este paradigma ao não pertencer a nenhuma das duas categorias. Pela quantidade de personagens, o número de histórias paralelas aumenta também. Em vez de ter simplesmente um caso por episódio, o seriado escancara e coloca dois, três e às vezes até mais em um só capítulo. Tendo um ritmo similar ao próprio Vic Mackey, a série coloca o pé na porta ao exibir diversos crimes lutando entre si por seu próprio tempo de tela. Enquanto Vic e a equipe estão com um novo chefão da máfia para cuidar, Dutch e Claudette cuidam de um homicídio e Julien lida com uma invasão domiciliar. Cortes rápidos entre cenas caracterizam bem esse sentimento frenético: momento se tem Claudette interrogando um suspeito intensamente, corte para uma intensa perseguição de carros e novamente para uma apreensão de suspeito em uma boca de fumo. Ao longo de todas as sete temporadas isso se mantém, técnica que caracteriza e diferencia “The Shield” de outros seriados policiais.
Por ter sido lançado com um orçamento reduzido, “The Shield teve de cortar o custo de muitas áreas, como equipamentos de filmagem e roteiristas. O que tinha tudo pra ser negativo, aqui tem um impacto inicialmente positivo. Pela carência estar especialmente nestas duas áreas, muito da identidade da série se desenvolve na maneira como a equipe de produção se virou para fazer o necessário com o disponível. A falta de dinheiro para conseguir equipamentos de qualidade implicou no uso de câmeras de mão e com elas veio o famoso efeito da câmera tremida. Não gostar do efeito é compreensível, pois seu uso às vezes atrapalha o entendimento do que diabos está acontecendo na tela. Porém, o modo como empregam este efeito aqui é muito satisfatório. O formato de tela em 4:3 somado ao efeito gera uma tensão sem igual, ainda mais quando o uso da câmera tremida é aplicado a cenas pouco movimentadas. Diálogos intensos gravados em uma tomada só, somados às balançadas, zooms rápidos e o formato claustrofóbico apenas intensificam o calor das conversas ao transformar simples palavras em fogo. No entanto, o seriado também foi lançado em 16, então não sei dizer se essa impressão é exclusividade do formato original em 4:3. Não ouvi nenhuma reclamação de quem assistiu no formato, mas é difícil supor qualquer tipo de coisa sem ter visto “The Shield” em widescreen.
Outro modo como a série se beneficiou dos cortes financeiros foi na parte dos roteiros, área que se viu repleta de roteiristas inexperientes. O mercado televisivo ainda estar no começo de seu apogeu e os roteiristas não terem muita experiência deram uma liberdade enorme aos profissionais envolvidos, pois não havia nenhum trabalho previamente lançado que servisse como modelo do que fazer. Sendo assim, muito do potencial criativo ainda estava bem cru. Curiosamente, um desses roteiristas era Kurt Sutter, que começou sua carreira aqui e anos mais tarde criaria “Sons of Anarchy“. O lado bom dessa falta de experiência foi que com “The Shield”, um modelo relativamente novo de seriado foi exposto. Não havia nada como aquilo e se existiu algo similar, não funcionou tão bem quanto. O estilo pé na porta em conjunto com a brutalidade do conteúdo foi um choque para a audiência, que não esperava algo tão forte e gráfico em um programa de TV a cabo simples. Inicialmente, o estilo funciona muito bem ao chocar os espectadores com o conteúdo maduro e de extrema qualidade, mesmo sendo carente de profundidade de roteiro. Isso acaba dando mais espaço aos atores, pois uma história pouco complicada acaba direcionando a atenção para os personagens. Felizmente, não há atuação tão disparadamente ruim para desapontar alguém, fato refletido no Globo de Ouro dado a Michael Chiklis por seu trabalho na primeira temporada.
Infelizmente, esta mesma falta de profundidade de roteiro, que inicialmente dá uma boa impressão, logo se torna ultrapassada na segunda temporada. Não ter uma história tão densa de começo é interessante em termos experimentais, até porque fica mais fácil para o espectador digerir o seriado e a grande quantidade de personagens. Na segunda temporada, a falta de ligação entre o enredo dos episódios acaba tornando a experiência um pouco batida e sem graça. Os episódios não chegam a ser ruins, longe disso, mas a falta de uma conexão entre eles passa a impressão de que nada daquilo está indo para algum lugar. O que previne estas temporadas de serem piores é o estilo único da série, que nunca se perde, e a própria força do elenco, que desde o começo se mostra competente e até o final se mantém dessa forma. Na terceira temporada, por exemplo, resolvem bem esse problema ao rechear os episódios com tramas maiores, mas na quarta temporada estragam ao voltar para o mesmo erro de antes. Mesmo que tais temporadas com tramas mais rasas não sejam ruins, a diferença de qualidade entre elas e as outras melhor elaboradas é bem clara. No fim das contas, isso é o que acaba impedindo este seriado de atingir patamares superiores de qualidade. Simplesmente não existe uma estabilidade de qualidade entre as temporadas. Claro, algumas podem ser melhores que outras sem que a série sofra com isso, mas tudo depende da média mantida. Se todas as temporadas forem muito boas e duas forem espetaculares, não haveria problema, por exemplo.
Uma das séries mais influentes dos Anos 2000, “The Shield” quebrou diversos paradigmas ao abrir espaço para novos seriados serem produzidos em canais de TV a cabo simples. Não que séries não existissem em tais canais, elas estavam lá, mas nenhuma possuía o orçamento e alto nível de produção como este. Para melhorar o que já era bom, diversos atores renomados do Cinema ainda fizeram pontas aqui, tal como Glenn Close e Forest Whitaker. Estes adicionam tão positivamente a equipe que deixam sua ausência bem notável nos episódios em que estiverem ausentes. Além disso, como é dito e repetido por diversos fãs e membros da crítica, este seriado possui uma das melhores conclusões de toda a história. A linha de história iniciada no fim da segunda temporada e desenvolvida mais a fundo nas três últimas torna tudo mais interessante, apontando cada vez mais para um final que muitos se considerariam covardes demais para ver. Jogando todas as fichas na mesa e vencendo, “The Shield” embrulha sua trama de sete temporadas de uma maneira que pode não ser a melhor de todas, mas certamente ficará marcada na memória de quem assistir.