Quem acompanhou até aqui sabe que o caminho foi difícil. Depois de quatro filmes variando entre regular e bom, nenhum fazendo muito para alçar o nome da série como sinônimo de qualidade, outras seis continuações foram lançadas, estas já variando entre revoltantemente terrível e medíocre. A estratégia da produtora responsável, a Dimension Films, não foi tentar fazer bons filmes ou investir muito nos projetos para tentar agradar a crítica. Ninguém fazia isso. Mesmo assim, é possível dizer que ela conseguiu baixar o nível padrão das outras produtoras, cuja filosofia era comercial acima de tudo e não tinha problema em repetir fórmulas. A preocupação da Dimension Films com qualidade era zero. Ela preferiu lançar a maior quantidade possível sem nenhum investimento de fato nas produções, que logo passaram a ser lançadas diretamente para home video com qualidade vacilante até chegar num ponto de lançar meias idéias com uns trocados apenas para segurar os direitos da série. Eis que finalmente, depois mais de 15 anos de planos para um reboot da série, outra produtora conseguiu os direitos para a obra de Clive Barker. Renasce “Hellraiser”.
Felizmente, a proposta não é ser exatamente uma refilmagem do original, com a família se mudando para a casa abandonada do irmão e descobrindo que sua carne amaldiçoada estava sob o assoalho esperando uma chance para voltar à vida. Agora a história é centrada em Riley (Odessa A’zion), uma dependente de drogas em recuperação que tenta retomar o controle sobre sua vida ao mesmo tempo que está sob o constante escrutínio das pessoas que acham que ela vai recair. Num dia particularmente tenso, Riley se envolve numa aventura com seu namorado e acaba se deparando com uma curiosa caixa de quebra-cabeça, que logo se mostra uma porta para outra dimensão de prazeres diferenciados.
Nem sempre dinheiro resolve problemas, e nem sempre falta de dinheiro é significado de má qualidade. “Hellraiser” é um caso que já sofreu muito por falta de dinheiro, pois a maioria foi feita com orçamentos baixos e ambições grandes demais em alguns casos. Claro, o pior fator nessa situação é a falta de criatividade para contornar essas limitações financeiras, o que resultava em momentos que falhavam em suas intenções completamente; cenas fracassadas de fato, do tipo que transmite certa vergonha alheia por ficar claro como ela tenta algo e não consegue. Por outro lado, a série teve seus momentos de glória por justamente mostrar algo que parecia além de sua capacidade com orçamentos tão pequenos, cenas como o corpo se reconstruindo no sótão em “Hellraiser“, as representações do inferno em “Hellbound: Hellraiser II” e até o pior de todos, “Hellraiser: Revelations“, tem efeitos especiais decentes para algo feito com duzentos reais. Mas de todas as vezes que a série teve um impulso financeiro, como em “Hellraiser III: Hell on Earth“, nenhuma foi tão bem-sucedida quanto o reboot de 2022.
Parece que finalmente alguém levou o projeto a sério. Nessa altura, as únicas pessoas que ainda pensavam na série de alguma forma eram curiosos como eu ou fãs que mantiveram sua posição apesar de todos os fracassos em sequência, já no mercado havia renome e certa força por trás do nome, por mais que ninguém lembrasse de quais foram o sexto, oitavo ou décimo filme. Talvez muitos não soubessem que Doug Bradley havia abandonado o papel quase 15 anos antes. Mesmo assim, as pessoas sabiam que existia uma figura com pregos na cabeça, pele pálida, roupas de couro, e que ele estrelava uma série de filmes de terror. Bastou algumas dessas mesmas pessoas que lembravam do legado construído ao longo de décadas e certamente uma dose razoável de carinho pelo material para criar uma história que finalmente honra tudo que foi feito antes. Se até Clive Barker mudou seu frequente tom desdenhoso para elogiar esse reboot depois de falar que “Revelations” não saiu de sua bunda, muito menos de sua mente, então há algo aqui.
Há qualidade a ser encontrada no roteiro, que se preocupa em reunir as maiores qualidades dos melhores filmes: a história pessoal de um inocente desavisado envolvido num esquema demoníaco e a expansão da mitologia encontrada no segundo filme, trazendo maiores informações sobre a seita dos Cenobitas, sobre o inferno e seu folclore. “Hellraiser” é completo. Não posso acusá-lo da superficialidade do primeiro ou da falta de competência técnica encontrada em quase todos os anteriores, principalmente a falta de um diretor bom e de um roteiro que não seja uma apropriação descarada. Há novas ideias a serem encontradas, mais delas do que se poderia esperar considerando a possibilidade de apenas condensar duas obras de 90 minutos em uma de 120. Isso até seria uma estratégia razoável para um roteiro com substância, ainda que um plano pouco original.
Das novidades, a mais óbvia é a nova Pinhead. Sim, nova. Pela primeira vez na série, apesar da mudança de ator que aconteceu duas vezes antes, o famoso vilão agora é interpretado por uma mulher. E isso é um bom sinal. Não porque trocaram o sexo, mas porque mostraram que isso não faz diferença e que Jamie Clayton faz jus a quão icônico é o papel, facilmente superando Paul T. Taylor e Stephan Smith Collins. Para além de um novo design e a mudança para chamar novos espectadores, Pinhead volta a ter um papel central na trama junto do melhor grupo de Cenobitas desde o original, cuja presença ativa é mais do que um desfile de caracterizações e torna-os parte de “Hellraiser” como vilões de um filme de Terror de fato.
É estranho pensar que algo com tantos acertos seria mais fácil de avaliar. São tantas alterações e tantas pequenas ao mesmo tempo, desde o quebra-cabeça ter várias configurações diferentes e formatos diferentes até novas regras, envolvendo mais do que apenas resolvê-lo e ser morto por demônios sadomasoquistas. Com isso, há mais espaço para explorar a jornada de uma garota que se envolve num jogo perigoso sem nem mesmo saber do que se trata direito conforme as pessoas morrem ao seu redor. E tudo é bonito. Importante ressaltar isso. “Hellraiser” finalmente não parece mais um produto de baixo orçamento, agora há estrutura e eficiência por trás de toda a apresentação da obra.
No fim, a maior surpresa aqui não foi ver que foi um remake respeitável e muito mais bem-sucedido do que a maioria dos remakes de Terror, que até adquiriram fama ruim depois de tantas tentativas de reviver nomes famosos e entregar resultados considerados medianos pela maioria. A questão é que, nesse caso, o remake foi melhor que o original e todas suas continuações. Se no primeiro faltou polimento e dinheiro, além de um pouco mais de profundidade, cabendo ao segundo preencher as lacunas e corrigir os problemas, “Hellraiser” traz uma história que encompassa apenas o suficiente para unir os acertos dos dois primeiros filmes e evitar as mesmas armadilhas, sendo também o melhor e mais completo da série por saber aproveitar todas as portas abertas por um orçamento mais farto e por aprender com os vários erros do passado.