Eu não gosto muito do Natal. Como um todo. Depois de adulto, parece que se torna uma data importante porque desde cedo é um costume herdado e porque o resto do mundo também faz igual. É uma data importante porque sim. E então as pessoas são forçadas a parar a vida, cancelar ou mudar planos para passar tempo com uma família que talvez não estivesse muito alta na lista de prioridades de companhia para datas importantes. Para alguns é pior que para outros e algumas pessoas gostam mais da família do que outros, para mim não é uma questão tão grande mas também não é só isso: há toda uma cultura natalina que vem junto no pacote. Não é simples como uma reunião de família.
É preciso comprar uma árvore e encher de decorações, depois passar horas tirando tudo de algum canto da casa e montando do zero, é preciso passar mais algumas horas desmontando tudo também. Tem quem passe horas na cozinha preparando um cardápio típico de final de ano. Tem o amigo secreto em que você ganha um presente que teria pagado mais barato se não fosse a pressão da ocasião. Tem os shoppings cheios. Tem o trânsito nas estradas, o movimento elevado nos aeroportos e rodoviárias, além do aumento de preços em geral. Acima de tudo, os Estados Unidos costumam pesar a mão na breguice e adicionar moletons horrorosos, decorações em toda a parte, filmes que passam todo ano no mesmo canal no mesmo horário, biscoitinhos. Soa forçado. Até álbuns e filmes de Natal costumam me dar preguiça pelo tema e, no entanto, “The Holdovers” consegue se destacar. Ele consegue ser tão amargo quanto eu sobre a data e em graus diferentes, quando foco minha atenção em tudo que me enche o saco sobre a data e quando sou lembrado que existem pontos positivos. Ou que pode existir, que talvez haja esperança no fim das contas. Se não de felicidade, de pelo menos ser relembrado que é possível deixar muita coisa passar, não focar no que é negativo e talvez ser mais feliz no processo.
Mais do que servir como uma bela desculpa para esculachar o Natal, essa introdução conveniente me ajudou a quebrar parte da trava criativa que sentia para falar de “The Holdovers” e sobre como ele é um destaque inesperado dessa temporada de premiações. Há, acima de tudo, profundidade emocional a ser encontrada num elenco reduzido de personagens que passa por esses graus diferentes de sentimento, de se sentirem apenas um pouco amados e não saberem o que achar disso. Seria um consolo concedido como piedade a essas pessoas esquisitas, os tais rejeitados, ou será um sinal de que as coisas podem ser diferentes, de que há algo a ser encontrado nos lugares mais inusitados? Não há nada tão definido aqui nem relações de causalidade previsível. Há mais do que uma surpresa em como três pessoas passam uns dias juntas.
Para além da diversidade óbvia de idade, sexo e etnia, há uma riqueza na escrita desses personagens e principalmente na criação de planos de fundo estreitamente conectados com quem eles são no presente. Parece algo básico colocando dessa forma e, ao mesmo tempo, não é algo que sempre se encontra e deve ser valorizado, principalmente num bom Drama como esse. “The Holdovers” faz valer o princípio da tridimensionalidade na escrita de personagem e traz pessoas relacionáveis que todas possuem algo sobre si, algo que cativa e não pode ser brevemente resumido a uma função pontual no enredo. E nada exclama um desespero para forçar a audiência a se importar com qualquer um dos personagens.
O mesmo pode ser dito do professor: ele tinha tudo para ser o clássico exemplo do meia-idade ranzinza com um grande coração. E não deixa de ser, de certa forma, mas ao mesmo tempo é bem mais do que uma caracterização que conversa diretamente com o tipo de imagem que “The Holdovers” estabelece para ele inicialmente. Ele é feio, velho, veste-se mal e ainda tem um bigodão para finalizar sua aparência sóbria de professor malquisto. Ninguém gosta dele, mas por quê? Ele até é uma pessoa intransigente e chata como é acusado, ao passo que por trás disso há uma construção de caráter perfeitamente lógica. Ele odeia seus alunos e odeia o fato de que a política padrão de passar todo mundo resulta em uma geração de imbecis que se tornarão adultos imbecis responsáveis por outras pessoas. Não é de graça que ele tem sua reputação e suas frustrações. E, claro, não é como se todas suas atitudes e crenças tivessem uma justificativa razoável. Ele é humano como qualquer outro personagem aqui. Ele tem defeitos, ele erra e ele prejudica os outros porque não tem todas as respostas. Nada é tão óbvio aqui, longe disso; se existe uma tendência mais dominante, é a de que as coisas dão mais errado do que certo na vida.
O fator perfeito para estragar tudo e invalidar qualquer um dos aspectos elogiados é uma execução pobre. Felizmente, “The Holdovers” faz jus a todo o aplauso que vem recebendo pelas performances do elenco. Não há nada para criticar no professor interpretado por Paul Giamatti. Ele é perfeito no papel, perfeitamente escroto e com espaço para transmitir mais do que um arquétipo de pessoa frustrada, há um sentimento de humanidade por trás da muralha erguida e mantida por ele. Se há várias cenas sobre luto, nenhuma delas soa apelativa e usa o artifícios baratos para serem tocantes. Há alguém por trás disso chamada Da’Vine Joy Randolph.
E a história é bem simples. Em um internato na Nova Inglaterra, chega o momento em que os alunos se despedem da escola para voltar para suas casas e aproveitar o Natal em família. Todos menos alguns, é claro. Angus Tully (Dominic Sessa) e um grupo de garotos fica para trás porque não têm para onde ir, restando a eles ficar no colégio enquanto Paul Hunham (Paul Giamatti), um amargurado professor de História, fica encarregado de cuidar deles. Popularmente conhecido como um dos piores professores da escola, imperdoável e irredutível, Paul quer estar lá tanto quanto todo o resto: não muito. Mas ninguém tem escolha, e esse é o Natal.
No fim, o grande triunfo de “The Holdovers” é evitar quase todos os clichês associados a filmes sobre Natal, sobre amizades improváveis e sobre pessoas presas juntas num mesmo lugar. Apenas depois de um tempo percebi como o arranjo para as coisas darem errado existia e, apesar disso, a obra consegue desviar das armadilhas do melodrama e das lições de vida esfregadas na cara da audiência. Em vez de intensidade e simbologia batida, um simples gesto comunica um sentimento-chave ao final do filme. Sutileza acima de tudo.