Quem diria? Se me perguntassem alguns anos antes sobre o que eu acharia de ver Shang-Chi no Universo Cinematográfico Marvel, provavelmente daria risada. Naquele tempo, minha maior recordação do personagem era o entusiasmo de um caro amigo meu lendo a Coleção Histórica Marvel falando de um personagem muito exagerado chamado Mestre do Kung-Fu. Da Marvel? A mesma Marvel do Homem-Aranha? Pois é. Ela tinha um personagem chamado Mestre do Kung-Fu, que lutava contras as forças de seu pai, Fu Manchu, e não tinha nenhum poder exceto ser muito, muito bom nas artes marciais, ainda melhor que qualquer herói similar, como o próprio Punho de Ferro. Ele simplesmente era muito bom na pancadaria. E conseguia ver o reflexo dos seus inimigos tentando emboscá-lo num isqueiro Zippo cromado. Pois é. Quem diria que haveria um filme dele e, aliás, um muito bom?
Shaun (Simu Liu) leva uma vida completamente normal nas ruas de Los Angeles. Vive num apartamento pequeno, trabalha como valet em um restaurante junto com sua melhor amiga, Katy (Awkwafina), e seus dias são uma repetição dos anteriores sem perspectiva de mudança. E ele está satisfeito. Nada a mudar, exceto quando ele é forçado a isso e figuras suspeitas trazem o passado misterioso de Shaun de volta, ou melhor, de Shang-Chi, filho do líder de uma organização criminosa internacional chamada Dez Anéis. As coisas ficam um tanto complicadas conforme o rapaz busca saber o que seu pai quer dessa vez, depois de tanto tempo em silêncio.
Tudo começa normal, sem essa qualidade extraordinária que mais tarde se faz predominante. Eis uma história de fundo com eventos muito pregressos para introduzir melhor todo o cenário de cultura chinesa, esoterismo e até um tipo de magia. Já de cara, “Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings” retifica um erro que “Doctor Strange” comete ao não explicar tão bem como magia se encaixa no esquema de superpoderes e dons extraordinários. Tudo faz um pouco mais de sentido antes mesmo do protagonista aparecer pela primeira vez em um cenário mais tradicional, o horizonte urbano de Los Angeles. Então o público conhece um pouco quem é Shaun e a vida normal que ele leva até o momento em que ele adquire poderes e sua vida muda para sempre e… não é bem assim. Shaun não tem poderes, ele sabe de uma coisa ou outra sobre artes marciais e a audiência descobre isso tão subitamente quanto seus amigos que nada sabiam sobre ele.
E é meio que de repente que o filme começa a ficar muito bom. Logo nos primeiros momentos de introdução do personagem, tirando as piadinhas Marvel de sempre e as gracinhas típicas para apresentar o primeiro personagem de alívio cômico, a primeira sequência de ação de fato escancara as expectativas sendo também a melhor do filme todo. E não que isso seja um problema do tipo que faz todas as outras soarem decepcionantes depois de um começo muito bom, elas mantém um nível muito alto até o clímax: o único trecho de “Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings” que possui um toque de clichê em sua composição e decepciona um pouco por ser uma idéia batida e por ter uma cena bastante idiota e muito conveniente, um grande deus ex machina, que resolve praticamente o conflito inteiro em um momento. É a única cena de fato tosca da obra, nenhuma outra me trouxe um sentimento de decepção como ela. E é fácil identificar qual é, fica bem evidente.
Com isso, um grande medo que eu tinha com “Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings” era a história de um personagem mestre em artes marciais não receber a representação adequada na tela. Em outras palavras, havia medo que aconteceria igual com “Punho de Ferro”, outro herói da Marvel que domina a arte da porrada — embora menos que Shang-Chi — e teve um seriado com cenas de luta horríveis. Parece que o ator teve pouquíssimo tempo para treinar antes das filmagens, então o resultado foi o festival de cortes e coreografias feias que acabou saindo na tela. Simu Liu pode não ser Bruce Lee ou Jackie Chan, mas seu trabalho se mostra mais do que suficiente para compor o espetáculo visual orquestrado pelo diretor Destin Daniel Cretton. Se o sucesso não vem exclusivamente por atores ostentando habilidades proficientes, então as lutas ambientadas em locais diferenciados e inesperados garantem o entretenimento.
Há ainda maiores conexões com o resto do universo Marvel, algo que o próprio estúdio por vezes negligenciou enquanto construía a tal saga do infinito. Alguns filmes pareciam ter zero a pouca conexão com o grande arco em construção e acabavam parecendo “fillers”, episódios que não acrescentam muito, exceto por introduzir um personagem novo e às vezes nem isso. Ao menos nesse, é possível encontrar, nem que por um momento breve, alguma conexão e uma dica de para onde a nova grande saga está se direcionando.
Mas não é isso que, no fim, faz a diferença na hora de avaliar se o filme é bom ou não. Claro, é um bônus interessante, mas são as qualidades básicas que fazem “Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings” ser tão bom. Ele trata de um personagem desconhecido e lhe rende uma boa introdução independente de fama prévia ou de referência em outros longas do MCU. Tal personagem é um Mestre do Kung Fu e suas cenas de ação demonstram exatamente isso. Não uma maquiagem cinematográfica ou uma mentira mal contada para tentar fingir algum tipo de habilidade do elenco. Tudo é muito bem planejado para que um filme de artes marciais funcione como tal, em essência, embora possua traços de magia, misticismo e heroísmo clássico nele.
Até agora, alguns meses depois de ter assistido a “Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings” pela primeira vez, estou meio impressionado pela Marvel ter acertado em cheio no filme de um personagem tão secundário. Já estava com medo antes do estúdio ter usado todos os heróis principais nas três primeiras fases do Universo Cinematográfico e ter de recorrer a personagens menores nas seguintes produções, sob o risco de não conseguir chamar a atenção igualmente e não criar uma saga tão impactante. Hoje já é meio que aceito que será difícil superar a conclusão apresentada em “Infinity War” e “Endgame“, porém “Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings” me faz ter um pouco mais de fé nas possibilidades do futuro.