Finalmente chegou o momento. Depois de alguns diretores, roteiristas diferentes, atrasos, negociações conturbadas e rumores de todos os tipos, inclusive de que não haveria mais um filme com Daniel Craig, “No Time to Die” chega aos cinemas nada menos que 6 anos após seu predecessor. Sim, 6 anos, o maior hiato da série junto com aquele entre “Licence to Kill” e “GoldenEye“. Isso sem esquecer do maior fator nesse atraso todo, a pandemia global que atrasou o lançamento em mais de um ano. Enfim chega a quinta participação de Craig no papel, concluindo seu período de 2006 a 2021 como o mais longo de todos os atores, superando os 12 anos de Roger Moore.
O confronto com Ernst Stavro Blofeld leva James Bond (Daniel Craig) a abandonar sua posição como agente do MI6 e levar uma vida normal com Madeleine Swann (Léa Seydoux), curtindo a brisa da enseada italiana e vivendo uma vida boa sem muito na cabeça exceto eles mesmos. Mas a tranquilidade tem prazo de validade para homens como Bond, e quando seus inimigos descobrem seu paradeiro subitamente não há nada que restaure a confiança recém adquirida em sua parceira. Não parece restar mais nada ate o reaparecimento de um velho amigo colocar o agente em atividade novamente conforme uma nova ameaça global se revela.
O período entre 2012 e 2015 pareceu uma eternidade por conta de minha antecipação por “Spectre” na época, ainda que o hiato entre “Quantum of Solace” e “Skyfall” tenha sido um ano mais longo. Reclamei de barriga cheia, sem saber que o que viria pela frente seria uma espera tão grande quanto a dos fãs do final dos Anos 80, que temiam pelo futuro da série quando processos legais entraram no caminho de um terceiro filme com Timothy Dalton. Ironicamente, não houve o mesmo medo dessa vez. Os hiatos da Era Craig foram sempre entre dois a quatro anos, então os fãs não se preocuparam porque já tinham certa tranquilidade de que uma hora ou outra o próximo lançamento viria. Seis anos é muito tempo. Enfim, “No Time to Die” está aqui com um grande desafio pela frente: arrebentar as bilheterias como seus predecessores, só que em meio a uma pandemia que só dificultou a indústria do cinema.
Daniel Craig talvez só não iguale Sean Connery em seu desdém explícito por James Bond. Com o último tendo dito que daria um soco no personagem se o visse, sempre houve burburinhos na mídia sobre Craig reclamando do papel e das demandas físicas e falando que será a última vez que interpreta o personagem. Com isso, sempre me perguntei de que forma isso poderia influenciar o destino do personagem de alguma forma, talvez levando ele para um lado mais soturno ou moralmente mais questionável ou até mudando os roteiros levemente para abrir a possibilidade para o ator sair a qualquer momento. Ao menos é o que acontece em “Spectre“, cujo final até tem um ar de despedida caso não houvesse uma continuação. A existência de “No Time to Die” apresentando uma ligação narrativa direta com esse último mostra que a história iniciada anteriormente ainda tinha lugares para ir.
Se há algum medo de que esse seja como seu predecessor por conta de seguir seus eventos diretamente, não há necessidade disso. Certo, “Spectre” não é uma catástrofe que falha em tudo a que se propõe, erra feio na junção dos elementos clássicos e entrega uma experiência ainda abaixo dos mais fracos da série. Acontece que algumas cenas de ação sem energia alguma e uma história que beira o ridículo no tratamento do maior vilão do personagem estragam aquilo que é, no geral, uma experiência decente o bastante. “No Time to Die” não se contenta com apenas decente o bastante. Ainda que não alcance os dois pontos mais altos da Era Craig, “Casino Royale” e “Skyfall“, ocupa com folga a terceira posição e uma das mais altas se considerar todos os outros filmes. Eis um filme pouco formular, ousado em sua proposta e sem medo de tomar decisões, uma narrativa que aproveita as qualidades mais humanas do Bond dessa era e as amplifica de forma que haja um pouco mais de consequências perceptíveis no universo em oposição ao ar aventuroso de antes. Não tanto como uma melhora definitiva, apenas uma fidelidade ao estilo estabelecido.
Com a trama bem firmada como um ponto confiável, sem as mesmas baboseiras de inventar irmãos para James Bond e dar um motivo especialmente especial para o vilão ter uma rixa com ele, “No Time to Die” já garante um pilar de sucesso, faltando apenas uma parte ainda mais essencial para a obra: a ação. Não há como fugir da sombra do gênero, pois com muito ou pouco enredo ainda é um filme de ação em sua essência. Importa muito se a direção faz um bom trabalho na captação do movimento, se as cenas apresentadas trazem algo de novo além de intensidade gratuita ou mesmo se existe intensidade nelas. Há tudo isso aqui. Um pouco diferente, quem sabe, do que o fã de 007 está acostumado, com um pouco menos de grandiosidade fantástica no design como nos cenários de Ken Adam em “The Spy Who Loved Me” e menos apoio em efeitos especiais. “No Time to Die” traz um tipo de ação não tão extraordinária e surreal, com acrobacias apenas muito improváveis em vez de absolutamente impossíveis; é também mais sistemática, sem firulas para mero efeito artificial ao passo que mantém as sequências estratégicas e diretas ao ponto, com um objetivo claro e sequencialmente representado por imagens que estabelecem bem as etapas da operação.
Nesse sentido, “No Time to Die” não quebra barreiras. Nem com sequências gigantes custando milhões, nem com cenas de execução complexa ou acrobacias perigosas, nem mesmo com equipamentos tecnológicos inéditos roubando cena como acontecia antigamente. Seu diferencial é ser mais contido como um todo. O início finalmente conserva a cena clássica do cano da arma, ainda que com um nível de variação, e deixa para mudar um tanto o ritmo das clássicas sequências pré-créditos, usando o espaço para já iniciar a história em vez de separar um trecho mais agitado. Nem faria sentido uma missão aleatória com Bond aposentado, e mesmo se houvesse alguma margem, talvez faltasse tempo: com 163 minutos, esse é o mais longo da série. Todo espaço possível foi utilizado.
“No Time to Die” é um filme diferente, talvez o mais diferente de todos por se inspirar muito em um predecessor peculiar, se posso dizer: a única participação de George Lazenby no papel em “On Her Majesty’s Secret Service“. É uma má escolha? De forma alguma. Apesar do preconceito com Lazenby, seu filme é ótimo. Ótimo a despeito do ator. Não só nos temas mais pessoais e no tom sentimental do enredo, há também rastros da obra salpicados, da música de créditos por Louis Armstrong ao tema instrumental de John Barry incorporado na ótima trilha de Hans Zimmer, a melhor desde David Arnold nos dois primeiros longas da Era Craig. Mesmo esse não sendo o melhor da série, ele ao menos encerra perfeitamente bem esse ciclo e não me decepcionou quando declarei que perderia a fé na humanidade se esse filme fosse ruim. Não foi.