Se quiser agradecer algo além do próprio Krzysztof Kieslowski pela gloriosa Trilogia das Cores, “A Dupla Vida de Véronique” é um perfeito candidato. Claro, no fim das contas não muda nada porque foi Kieslowski quem fez esse filme também, cujo sucesso de bilheteria foi diretamente responsável por agregar financiamento para a tal trilogia. O dinheiro veio de algum lugar e, ironicamente, não foi de uma produção mais comercial ou acessível como nos casos dos diretores que fazem filmes que vendem para ter dinheiro e fazer os filmes que eles querem. Não, esse é um trabalho tão caracteristicamente do cineasta quanto qualquer outro, com a exceção de ser um dos melhores.
Weronika (Irène Jacob) é uma jovem moça polonesa de vida aparentemente simples. Ela passa os dias fazendo o que ama, seja acompanhando pessoas queridas ou expondo sua bela voz, a qual abre novos caminhos para seus sonhos se concretizarem. Mas há algo estranho e diferente, que ela mal consegue descrever ou entender: Weronika sente que não está sozinha no mundo. O mesmo acontece com Véronique (Irène Jacob), uma moça francesa de aparência exatamente igual a Weronika e com uma vida diferente nos detalhes. As duas compartilham uma conexão invisível que as une como nada, embora não saibam como isso as influencia sem nunca terem se encontrado.
Não sei qual a expectativa comum para um filme com essa premissa. Se for algo como o que eu esperei, então “A Dupla Vida de Véronique” será uma surpresa, porque não é nada como uma história que busca ser lógica na abordagem de seu conceito central. A primeira coisa em que se pensa com uma premissa dessas, imagino eu, é o leque de possibilidades que se apresenta conforme o espectador imagina todas as implicações de ter duas pessoas iguais em lugares diferentes do mundo. Como isso funciona? São gêmeas? Elas se conhecem? Suas personalidades são idênticas como a aparência? O comportamento de uma influencia no da outra? Todas são perguntas válidas, mesmo que comparáveis à forma como um espectador fica curioso para ver como um super-herói usa os poderes que ganhou. Se o assunto é interessante, é natural que o espectador tente entender melhor.
Entretanto, “A Dupla Vida de Véronique” não quer que ele entenda. Ou melhor, dá respostas apenas parciais, responde parte da pergunta e estabelece o nível de satisfação de acordo com seus próprios termos. Isso poderia significar que a obra é incompetente na exploração de suas idéias e não explica o que deveria ser explicado, apresentando desinformação no lugar de mistério ou ambigüidade. É diferente. O roteiro mostra que, sim, tem em suas prioridades ir a fundo no conceito de vida dupla e assim o faz, porém ele se esquiva das abordagens óbvias e das perguntas comuns para introduzir algo único. Isso não é automaticamente bom, nem automaticamente ruim. Escolher um caminho alternativo ainda depende da competência por trás dessa decisão. Em outras palavras, não se encontra um filme que divide seu tempo de tela igualmente entre as duas personagens e seus arcos individuais ou que se desenvolve em direção a um encontro do destino entre elas.
E esse jeito alternativo é bem realizado. Talvez não da melhor forma possível porque ainda senti que o assunto poderia ser explorado mais a fundo. O lado bom é que não posso largar uma mera acusação de superficialidade, pois o roteiro demonstra ter sua própria agenda em relação a esse laço sobrenatural, algo que funciona como artifício de surpresa para puxar o tapete debaixo do espectador que vai assistir cheio de idéias próprias. De uma forma metalingüística, irônica e talvez um tanto niilista, “A Dupla Vida de Véronique” prega uma grande peça no espectador que espera encontrar respostas para tudo o que busca. Ele não tem intenção de ser transparente ou expor as especificidades de seu conceito propositalmente, o que, novamente, não é usado como desculpa para uma suposta superficialidade. É tudo uma grande metáfora sobre expectativa e recompensa, sobre como a vida muitas vezes não poderia ligar menos para o que o indivíduo espera de um momento específico. Às vezes a satisfação é nada. A pessoa busca e espera algo sem motivo nenhum além de sua vontade e encontra… nada. Novamente, o argumento bem aplicado e exposto de forma clara, sem que seja necessário subentender algo para justificar possíveis falhas da obra.
Assim, pode-se dizer que a história trata muito mais de personagem e de idéias do que de enredo propriamente dito. Buscar lógica demais em “A Dupla Vida de Véronique” é perder o sentido da experiência, o que não quer dizer que ela não existe. Ela está lá, só não há foco nela e nas mecânicas adjuntas. Acaba sendo mais uma história da vida, sobre uma garota que sente algo estranho e diferente que não entende e passa o filme sem entender, assim como o espectador. Não há explicações para o sobrenatural. No lugar, encontra-se a míriade de sentimentos causados por ele, como ele afeta os meros mortais que nada entendem sobre nada. Pode parecer sem propósito e vazio, mas isso certamente não é uma qualidade que atribuiria a esse filme.
Por fim, “A Dupla Vida de Véronique” é como um boa, extensa e engajante ilustração da ironia por trás do elogio sobre ser “um em um milhão”. O número grande pode chamar a atenção e apontar para a idéia de ser chamado de alguém singular entre tantos por aí. No entanto, se isso for verdade, significa que existem mais de 7800 outras pessoas iguais e que também são um em um milhão. O sujeito provavelmente não as conhece e talvez morrerá sem conhecer um de seus 7800 clones. Então tal fato extraordinário, no fim, não faz diferença nenhuma. Mas, claro, não é só uma mera história em que nada importa porque sentido só existe quando alguém o atribui, e sim uma que envolve pessoas reais para além dos papéis que preenchem na premissa. Acompanhar o dia-a-dias das moças é entretenimento por si. A substância da obra se encontra na junção do tradicional com o místico. Apenas um ou outro, o conceito da vida dupla ou a vida das garotas, provavelmente seria uma alternativa rasa.