Esse poderia ser um primeiro parágrafo exatamente igual ao de “Não Amarás“. Poderia falar do filme ser a expansão de um dos capítulos de “Dekalog”, um projeto composto por dez capítulos de 1 hora e baseados nos temas dos Dez Mandamentos da Bíblia. Ou talvez do título brasileiro novamente divergir da tradução literal, que seria algo como “Um Filme Curto Sobre Matar”. Mas não. Esse é um primeiro parágrafo diferente. Não muito. Apenas o bastante para nesse ponto começar a introduzir informações novas sobre a obra em questão. Exibido em uma mostra de Krzysztof Kieslowski de um cinema local, infelizmente interrompida por um agravamento da pandemia, “Não Matarás” fala em 1988 sobre um assunto debatido ainda hoje e que, muito provavelmente, continuará sendo discutido daqui 150 anos: morte, assassinato e o papel do indivíduo em decidir quem vive em quem morre.
Três personagens são acompanhados na cidade de Varsóvia. Piotr (Krzysztof Globisz) é um advogado que acabou de terminar seus estudos e de passar no exame da Ordem, pronto para enfrentar os desafios que vêm com a escolha de carreira. Já Jacek (Miroslaw Baka) é um jovem andarilho que vaga pela cidade sem muito objetivo senão fazer o que vem em sua mente no momento, atitudes quase aleatórias e caóticas em sua essência, nada premeditado com muito tempo de planejamento. Percorrendo a cidade também está Waldemar Rekowski (Jan Tesarz), este com um propósito, ao menos: dirigir seu táxi. Suas origens, personalidades e agendas distintas se aproximam pela imperceptível força do acaso com conseqüências notáveis.
Certo, não é o assunto mais original de todos. Há filmes demais sobre assassinato ou apenas apresentando morte como um elemento narrativo ordinário. É como se a ausência da presença de morte no cotidiano do sujeito comum fosse compensada com uma exploração extensiva no cinema. Quando ela se apresenta na vida real, é através da partida de um ente querido ou do cachorro da família que acompanhou-a nos últimos 12 anos, talvez de um acidente ou um crime violento. De qualquer forma, não é raro. E mesmo assim, nenhum desses casos envolve alguém sendo alvo de assassinato por envolvimento em uma intriga criminosa. Ou alguém morrendo numa explosão. Esses fetiches, se podem ser chamados assim, são supridos aos montes. As discussões mais sérias sobre o tema estão em menor número mas também não são poucas. “Não Matarás” não abre novos caminhos nessa discussão, nem hoje, nem em 1988, mas não deixa de ser uma incursão marcante por demonstrar uma competência que nem sempre se encontra.
Kieslowski novamente traz um estudo sobre um tema. Não estudo de personagem, especificamente, mas uma exploração de um assunto — ou dez, se o “Dekalog” inteiro for considerado — usando de personagens como peões ilustrativos. “Não Matarás”, diferente de seu similar “Não Amarás”, traz suas três figuras centrais como pessoas fechadas e não muito trabalhadas. Importam mais seus atos do que sua psicologia específica, suas idiossincrasias e suas crenças. Elas entram em jogo em algum momento, claro, apenas quandos serve as necessidades específicas do roteiro. E está tudo bem. Não há problema nisso, pois nunca fica a impressão de artificialidade em nenhum deles. Seus papéis são mais pontuais, mais objetivos. Não superficiais ou falsos.
A partir disso, “Não Matarás” desenvolve seu ponto de explorar as facetas do assassinato sob diferentes ângulos. Não do jeito mais tradicional nem do mais inventivo. Está longe de ser um estudo por trás das motivações que levam uma pessoa ao ato, da psicologia de um assassino e dos eventos de sua vida que alimentaram uma personalidade capaz de matar. A idéia está mais próxima de apresentar o ato sem cerimônia, sem nenhum tipo de construção especial ou tradicional, por assim dizer, em torno disso. É um tanto óbvio apontar a qualidade heterodoxa do filme, sendo europeu, porém não deixa de ser um ponto notável por estar diretamente ligado à forma como o diretor trata de seu objeto de interesse. Ao mesmo tempo que parece ser outro trabalho fora dos padrões, reflexivo e despreocupado com as convenções da linguagem americana — ou seja, mais filme arte do que comercial, em termos simples — ele não se deixa esquecer para quê veio e mostra não só um lado do tema escolhido, mas alguns deles que de fato não são pioneiros em nada exceto pela ótica do artista.
Há alguma coisa que não me agrada nem um pouco em “Não Matarás” e, antes de mais nada, fica muito claro que é uma escolha estética propositada, com função narrativa não tão fora do alcance para que tudo pareça um capricho estilístico. No momento da escrita desse texto, descobri que o cinematógrafo responsável, Sławomir Idziak, não queria a posição na produção e fez um trabalho propositalmente agressivo e feio para garantir seu fracasso. E é claro que Krzysztof Kieslowski adorou isso e o contratou na hora. O resultado, por mais que seja da preferência do diretor, é composto de máscaras agressivas na forma que destacam o conteúdo, ou melhor, rasgam o quadro com omissões irregulares de suas partes, às vezes até atrapalhando a visualização da cena. É esquisito, no mínimo. A gradação de cor, seguindo no mesmo caminho, trabalha em função de uma imagem que quase escarra nos ditos padrões sensatos de uma fotografia clara e equilibrada, abusando de cores saturadas ao ponto da irrealidade. Em suma, é uma soma de fatores desagradáveis.
Então alguém poderia dizer que assassinato é desagradável, que a morte é desagradável e que não há nada de bonito no assunto, por isso são coerentes as decisões estéticas do diretor e do cinematógrafo. De fato é possível tecer um argumento a favor de tais decisões, mas só até o ponto em que elas fazem sentido, já que o juízo de valor eventualmente depende do julgamento individual. Eu não gosto. Foi incômodo de forma que me tirava da experiência em oposição ao incômodo que faz o espectador se sentir ainda mais envolvido com a feiúra dos assuntos explorados. E acabam aí os problemas de “Não Matarás”, um excelente filme que vence em sua proposta através de outros elementos melhor executados do que o argumento um tanto grosseiro da cinematografia.