“A Cicatriz” é o tipo de filme que eu provavelmente nunca veria se não fosse em uma circunstância extraordinária. É uma produção polonesa de 1976, pouco divulgado e não muito visto — com apenas cerca de 1600 avaliações no IMDb — e do começo da carreira de Krzysztof Kieslowski, seu primeiro longa-metragem para os cinemas. Se não fosse o cinema culto da cidade fazendo uma mostra com 10 obras do diretor, só consigo me imaginar assistindo daqui alguns anos quando todo o resto mais interessante de seu repertório tivesse sido conferido. Mas não, o Cine Passeio de Curitiba o colocou como o primeiro da mostra. Deus abençoe a curadoria.
Um comitê do partido comunista se reúne para finalizar os planos de construir uma indústria química nas redondezas de um pequeno e esquecido vilarejo. Os detalhes são acertados, a despeito dos protestos do povo local, e Stefan Bednarz (Franciszek Pieczka) é indicado para ser o diretor geral das operações. Dos homens do partido, ele é o que se pode chamar de honesto e bem-intencionado, inclinado a fazer o melhor de sua posição de poder e criar um lugar em que as pessoas gostem de trabalhar. Mas os planos não correm tão bem e ele logo vê seus objetivos se corromperem com a interferência de partes externas.
Primeiros filmes de carreira são curiosos. Por um lado, há os casos extraordinários que não deixava dúvida alguma sobre o talento do indivíduo; um trabalho tão competente só poderia fazer sucesso e elevar o artista ao estrelato, era a chance de demonstrar ao mundo o que sabia fazer. Nem sempre isso acontece. Quentin Tarantino, em um exemplo diferenciado, tem dois primeiros filmes: “My Best Friend’s Birthday”, uma produção amadora gravada ao longo de quatro anos; e “Reservoir Dogs”, considerado por ele como seu primeiro trabalho de fato. Como vai a fama, o primeiro seria um caso de estréia ruim e o segundo uma estréia espetacular, de fazer as pessoas se perguntarem de que buraco saiu o diretor. “A Cicatriz”, embora não seja ruim, se coloca no grupo dos primeiros trabalhos mornos, que não chegam perto do que o artista eventualmente alcançou.
“A Cicatriz” não tem muitos atrativos sobre si. Tirando toda a parte de reputação, revisionismo e associação ao nome de Kieslowski, que eventualmente ficou famoso, sobra de pouco a nada para dizer que é uma história chamativa e interessante, em primeiro lugar. Mas tudo bem, esquecendo de incentivos para assistir à obra, vem a análise do conteúdo pelo que ele apresenta e a mesma impressão se repete. Ainda se trata de um homem que assume a supervisão da construção de uma fábrica de produtos químicos. As pessoas não gostam. A construção segue em frente. O homem parece estar em conflito. Algo não agrada ele e sua esposa de retornar à cidade de seus passados. E a construção continua.
Não que exista uma regra sobre escolhas de assuntos e algum tipo de noção definitiva do que é interessante e do que não é. Uma crítica clichê diria que falta assassinato, sexo, romance, um vilão de bigode fino e alguma explosão. Não é bem assim mas também me questiono sobre que tipo de entretenimento é discutir planos de construção de indústria. O assunto é desmatar uma área florestada para o início da construção, mas antes deve-se decidir os membros do comitê principal para então analisar a situação das estradas para analisar como os cidadãos se locomoverão até as instalações. Poderia ser um plano de fundo político para o enredo explorar? Provavelmente. “A Cicatriz” acaba por não explorar tais assuntos de forma que eles sejam mais interessantes que politicagem falada em polonês.
Há também alguma coisa sobre o passado do protagonista e de sua esposa envolvendo a cidade e um dos partidários envolvidos com a indústria, mas isso nunca chega a ser explorado a fundo em “A Cicatriz”. O mesmo acontece com o desenvolvimento dos personagens, quase nulo com exceção do protagonista. Dele ainda se pode extrair algo pelo tempo de tela que possui, um pouco de suas intenções não tão complacentes com os desejos do partido comunista e até um tanto subversivas. Ele busca fazer sua gestão ser uma mais humana e consciente das necessidades dos envolvidos, seja os que trabalham ou os moradores da cidade. E é isso. Ele é um bom homem, torturado pelos lados que o puxam e que tenta fazer a coisa certa. Qualquer aprofundamento raramente passa de sugestão.
Para ajudar, o ritmo é extremamente lento, daqueles que alimentam o clichê de que cinema europeu é vagaroso, introspectivo e chato. A falta de trilha sonora também é sentida e não ajuda nem um pouco em manter a experiência um pouco mais fluída, faz exatamente o oposto. Com um pouco de sono, o convite para uma soneca é certo. “A Cicatriz” só funciona como narrativa mesmo porque aborda o essencial do essencial para que exista algum tipo de coesão. Entende-se o básico sobre as intenções do grupo de políticos no início, sobre a controvérsia causada pela construção e sobre protagonista chegar sem planos de corresponder às expectativas de todos ao seu redor, tanto do partido como do povo. Da forma como é apresentado, o enredo parece um protótipo da trama política envolvendo escândalos e a desonestidade institucionalizada trabalhada em “Chernobyl“. Está bem longe de chegar no mesmo nível de complexidade e, em parte, é compreensível porque o seriado tem um tempo bem maior para desenvolver suas idéias e trata também de um evento bem mais catastrófico e popular. Não vou dizer que “A Cicatriz” faz o que consegue, parece que ainda havia potencial para desenvolver mais.