Nem precisa questionar a necessidade de um reboot de Hellboy quando os fãs pedem há anos um terceiro filme da série começada por Guillermo Del Toro em 2004. Só não faz sentido. Dois filmes com o mesmo ator e mesmo diretor, ambos bem com crítica e bilheteria e com os fãs. Então se decide tirar Del Toro de sua posição, trocar o ator principal e começar do zero. Mike Mignola mais próximo do projeto poderia ser um bom sinal. Não é. Nem mesmo a história, o elemento que mais poderia se beneficiar disso, consegue se consagrar como um ponto positivo. Poucas coisas dão certo aqui.
Hellboy (David Harbour) nasceu de um experimento que deu errado para os nazistas que tentaram convocá-lo para vencer a guerra. Em vez disso, ele apareceu diante dos Americanos e passou a eventualmente trabalhar com o Bureau de Pesquisa e Defesa Paranormal investigando fenômenos bizarros mundo afora. Duas figuras do passado de Hellboy se unem para reviver uma bruxa mitológica e destruir o mundo dos homens para dar início a uma nova era de um mundo de monstros, onde eles não sejam caçados e tratados como desalmados.
Dizer que pouca coisa dá certo é um eufemismo para dizer que muito dá errado. Muitas foram as críticas para esse filme, estranho desde o trailer que passou antes da sessão de “Avengers: Endgame“. Além das questões do começo do texto sobre a necessidade de um reboot, ele apenas não parecia muito bom. O trailer não me convenceu de que valia a pena conferir essa nova aventura, por isso se passou mais de um ano até finalmente ver do que se tratava, depois ainda de todas as esmagadoras críticas negativas. Nem a curiosidade de ver o tamanho da porcaria surgiu. Foi apenas falta de interesse. “Hellboy” mostra que não há nada a perder mesmo.
Uma das maiores críticas recaiu sobre o roteiro chamado de confuso, desconexo e sem sentido. Há certa razão nisso. Se por um lado Mike Mignola participou do projeto mais ativamente, por outro houve uma decisão peculiar de arco a ser adaptado. Os quadrinhos atualmente se organizam em quatro edições omnibus com as histórias do herói em ordem cronológica. “Caçada Selvagem”, o arco adaptado aqui, corresponde ao terceiro livro, já se encaminhando para o final da história. É um bom arco. Diferente, um pouco surrealista e bem ousado; ótimo para quem foi introduzido ao lado — ainda mais — sobrenatural e místico da história no segundo volume. Já como escolha como base para um filme que deveria reintroduzir o personagem, está longe de ser ideal.
No entanto, com isso não tento dizer que a obra é boa, melhor ou menos pior para quem leu os quadrinhos, ainda é medíocre independentemente de saber de qual material base ele surgiu. Isso, no final das contas, só serve como curiosidade. Para aqueles que não leram as histórias em quadrinhos, o filme por si deve se apresentar como uma obra coesa e compreensível, de fácil digestão, coisa que ele com certeza não é quando tenta contar uma história relativamente avançada do personagem e ainda tenta arranjar tempo para flashbacks contando a origem do gigante vermelho, sem chegar a se aprofundar nos inimigos nazistas, em Rasputin e outros aliados. A única adição legal para os leitores é a participação de Lagosta Johnson em uma cena. Só.
Até então, o roteiro não pode ser considerado o maior culpado pelo fracasso de “Hellboy”. Se o resto ainda fosse de algum grande valor, o todo seria redimível com cenas de ação bem trabalhadas, pois ao menos o roteiro abre espaço para freqüentes momentos com o protagonista fazendo o que sabe. Eis que entra a pior parte de fato da obra: a direção de Neil Marshall fazendo nenhum favor para os momentos de adrenalina. A primeira seqüência, expositiva a respeito do plano de fundo da vilã e da profecia subjacente ao enredo, já traz um gosto de que um filme ruim vem pela frente com a direção brega na vanguarda. Artifícios de manipular a velocidade de captura para efeito supostamente dramático e tentar forçar um tom sério apenas funcionam em detrimento da funcionalidade das cenas. Há uma grande diferença em saber o momento de congelar ou desacelerar um momento e tentar dar um ar épico porque sim. “Hellboy” é cheio disso.
Seguindo a mesma tendência, a violência explícita se mostra como outro elemento de estilo contra-produtivo porque parece gratuito. “Essa é uma versão adulta de Hellboy”: isso parece ter sido o grande dogma por trás da violência freqüente, adicionada por capricho gratuito sem nem ter o efeito cômico de um filme de Quentin Tarantino, por exemplo, ou a intensidade de uma obra realista em seu conteúdo gráfico. As cenas podem ser as mesmas dos quadrinhos em vários momentos, extraídas quase diretamente, porém sua adaptação só faz com que a página ainda seja a melhor fonte.
Como em muitos casos, é quase impossível não traçar comparações. Em especial nesse caso, com a vontade dos fãs de ter um terceiro de Guillermo Del Toro, seria ainda mais inevitável. David Harbour, o ator principal, atribuiu o fracasso aos fãs por não aceitarem seu novo filme divertido. Bem, não tão divertido e nem ele faz muito pelo sucesso da obra. Sua atuação por vezes retrata o protagonista como um adolescente birrento usando uma maquiagem não muito crível, próteses que deixam o personagem parecendo uma cria do inferno com rosto engessado de botox, além de uma caracterização que, como um todo, dá a impressão de baixo orçamento. Como não lembrar de Ron Perlman nesse momento? Entre esses problemas e efeitos visuais pavorosos e exagerados, “Hellboy” se torna o próprio culpado de seu fracasso. Que venha um milagre e traga o filme nunca lançado de Del Toro.