Finalmente chegou o mais novo filme de Christopher Nolan. Digo isso não só pelos três anos desde “Dunkirk” mas também pela incerteza que 2020 trouxe para os lançamentos. A primeira data era 17 de Julho, depois foi para 31 de Julho, 12 de Agosto e 26 de Agosto internacionalmente, começando nos Estados Unidos apenas em 3 de Setembro. Foram vários atrasos e um processo custoso para a Warner Bros., que teve que arcar com gastos a cada novo adiamento. Por sorte, a maior parte das grandes produções do ano foi adiada para 2021, incluindo “Viúva Negra” e “No Time to Die”, deixando espaço livre para “Tenet” lucrar ser o primeiro lançamento gigante desde o começo da pandemia, um trabalho de bom gosto para amenizar os ares pesados.
Um agente da CIA (John David Washington) é enviado para uma operação especial para obter um artefato de valor num auditório de ópera dominado por terroristas. A missão parece direta ao ponto, porém alguns elementos a tornam algo mais que o perigo de rotina. O agente então descobre estar envolvido em uma operação muito maior do que poderia imaginar, a qual envolve a presença de um notório traficante de armas russo, Andrei Sartor (Kenneth Brannagh), e uma tecnologia envolvendo manipulação do tempo que pode colocar a integridade do mundo em grave perigo.
Tem algo sobre os filmes de Christopher Nolan que sempre cativa o público e gera muito debate tão logo que a primeira pessoa assiste: as histórias quase sempre são de complexidade raramente vista. Raramente porque é bem comum que cineastas independentes se sintam empolgados vendo o sucesso de um “Inception” e tentem recriar algo em menor escala, um mistério enorme envolvendo algum tipo de maquinação sofisticada; invasão de sonhos, amnésia, viagem interdimensional ou, no caso de “Tenet”, manipulação do tempo. A diferença é que, por falta de recurso ou de competência, nem sempre dá certo. Com Nolan dá. Provavelmente porque tem ambos competência e recurso. Esse exemplo não é diferente e, embora não seja o melhor do diretor como vem sendo apontado nas opiniões não tão glorificantes da crítica.
As pessoas sem dúvida sairão de “Tenet” pensando: “O que diabos acabei de assistir?”. E com razão. Esse é outro que faz todos saírem da sessão e imediatamente olharem para quem assistiu junto e começar a debater teorias. Isso ou ir direto para o celular e pesquisar na internet por um artigo de alguém que viu mais de uma vez ou tem uma memória extraordinária para lembrar de detalhes que dêem sentido à complexidade. Não são tão óbvias as mecânicas, na falta de termo melhor, por trás das viagens no tempo não tradicionais, nada como entrar numa máquina do tempo e aparecer em 1955 como se apenas viajasse de um lugar para outro. Aqui funciona diferente. Há explicações o bastante para aceitar o que é mostrado como válido, convincente a fim de que se possa continuar assistindo sem questionar a credibilidade. No entanto, não vai longe a ponto de ser perfeitamente claro. E, sim, por um lado há a intenção de deixar uma parcela de mistério para incentivar as discussões que sempre acompanham os filmes do diretor, que aqui também assina roteiro. Por outro, é perceptível que parte dessa omissão serve para não ter que dar muitas explicações e arriscar furos na lógica.
O que não deixa a desejar nem um pouco é a ação. Sem margem para críticas. Toda a proficiência de um diretor familiarizado com o gênero é encontrada em um tipo de ação… diferenciado. Os trailers dão uma pista do que aguarda, com o tempo sendo manipulado de forma que várias tomadas aconteçam em velocidade reversa. O resultado é bem peculiar. Bem diferente dos experimentos com programas de edição e vídeos caseiros invertendo velocidade para criar efeitos especiais amadores. “Tenet” faz isso de forma planejada e profissional. Como é uma briga quando o tempo se comporta de forma anômala? Não faço idéia de como deve ser tomar um soco na boca nessas circunstâncias. Ou um tiroteio. As balas voltam para a arma, e então? É peculiar, dizendo o mínimo, mas também muito funcional. Ver para crer. Todo o clímax, em especial, eleva esse sentimento de intensidade bizarra a um nível equivalente ao escopo de todo o ato, a ambição máxima de uma sequência gigante de ação partindo de regras diferentes. É estranho e é entretenimento de primeira.
E o conceito de inversão de tempo não se limita apenas às cenas de ação e à narrativa, “Tenet” o incorpora também na trilha sonora composta por Ludwig Göransson. Por um momento — por vários, na verdade — achei que a trilha fosse de Hans Zimmer por ele colaborar com Christopher Nolan frequentemente e também pelo tom que remeteu a alguns de seus trabalhos anteriores. O que chama a atenção é o uso de sons reversos como parte da música. É sabido que sons em velocidade reversa ficam estranhos e distorcidos, talvez até inutilizáveis se não fosse provado o contrário aqui. De algum jeito, funciona assim como a dinâmica da ação em câmera reversa, também coreografada com os atores fazendo os movimentos ao contrário, mais um pedaço da forte identidade criativa surge através da música. Claro, também não é como se composições inteiras fossem tocadas de trás pra frente, é um trabalho mais inteligente envolvendo técnicas tradicionais e amostras estratégicas elevando o nível de sofisticação musical.
Só tive um problema de elenco com o protagonista de John David Washington, que não chega entregar uma performance fraca, longe disso, porém com algo incômodo nela. Só por isso já é possível afirmar que seu trabalho não é incrível, de entrar para a história, e o mesmo vale para o resto do elenco sem nenhum elemento que brilha de fato. Nenhum desperta dúvida também, ao passo que Washington por vezes parece estar interpretando um personagem de outro filme, copiado e colado em “Tenet”. Não é o que eu chamaria de caso clássico de má atuação. É diferente, uma boa interpretação de um personagem que nem sempre parece pertencer à cena. É como se houvesse certa jocosidade em um momento de tensão, o personagem demonstrando sentimentos incompatíveis com a situação e sendo convincente em sua incongruência.
A outra questão que me incomoda menos, e pode ser um problema para outros, é a mencionada esperteza do roteiro em tentar cobrir seus rastros para não se complicar em explicações sobre como funciona o sistema de reverter o tempo. As cenas finais jogam a poeira para baixo do tapete como quem diz que tudo estava nos planos e não há nada para questionar, o que pode enterrar a questão para uns e incomodar ainda mais outros. “Tenet” foi bem aguardado, estava há 5 anos sendo escrito e escolheu agora, em plena pandemia de todos os momentos, para surgir. Por sorte, parece que a situação não está tão feia quando poderia. Pode não ser um sucesso gigante, mas até que controlou bem os danos.