Quando se fala em filmes de Woody Allen, é quase automático pensar em histórias sobre pessoas desajustadas, neuróticas ou com alguma paranóia explorada comicamente, muitas vezes também incluindo um romance no meio para complicar a situação ainda mais. Romance sempre complica tudo. “The Purple Rose of Cairo” é um tipo diferente de filme, distante do que se espera do diretor. Ainda há romance e um toque de comédia, aqui acompanhados por uma trama inspirada no amor de Allen pelo cinema como arte, um filme de época falando sobre filmes de época. Mesmo sem neuroses e o personagem clássico do cineasta, este se coloca entre seus melhores.
Cecilia (Mia Farrow) recentemente começou um trabalho como garçonete junto com uma amiga sua. É seu dinheiro que ajuda a sustentar a casa e, principalmente, os vícios do marido, que pega seu salário e usa em noites de bebedeira. Não sobra muita satisfação nem no emprego, nem nos frutos que ela não aproveita. Sua única fuga é ir ao cinema de vez em quando e fazer parte de um mundo diferente nem que por alguns momentos. Quando ela decide assistir ao novo lançamento, “A Rosa Púrpura do Cairo”, e um dos personagens subitamente sai da tela para o mundo real, Cecilia vê suas maiores fantasias se tornarem realidade.
Muito já se falou do cinema como escapismo e muito será falado enquanto existir como forma de arte. O argumento percorre terrenos diversos, começando com uma visão literal do termo escapista como uma fuga literal de algo, do estar em uma sala de cinema para não estar em outro lugar indesejado. Outra visão diz respeito ao cinema sendo uma forma de transporte à uma dimensão fantasiosa em que as regras são diferentes, em que as coisas dão certo e a felicidade se atinge em cerca de 2 horas; inclusive, há quem defenda essa filosofia como modelo para que os filmes devem ser, já que há tragédia suficiente na realidade. Talvez um meio termo fale de arte como experiência, de um filme como uma oportunidade de imersão em situações inéditas com pessoas de valores e crenças aos quais o espectador tem acesso privilegiado. Seja lá qual for a visão escolhida, não há certa ou errada, funciona para cada um de um jeito. “The Purple Rose of Cairo” inteligentemente trabalha mais de uma dessas abordagens na aventura da protagonista com o cinema.
Por um lado, há a ânsia por estar dentro de uma sala, sentada numa poltrona no escuro, vendo uma enorme tela branca iluminada pela projeção. É um lugar melhor que um restaurante, melhor do que anotar pedidos, levar a comida, retirar a louça suja, lavar os pratos e ser xingada pelo pratão para ganhar uns trocados. Com certeza é melhor do que tolerar um marido folgado, beberrão, infiel e mentiroso num lar solitário. O outro lado é a experiência subjetiva de encontrar em um filme algo que não existe em sua vida: uma história de amor, pessoas pelas quais não seria nem um pouco difícil se apaixonar porque elas são incríveis. Mas não é tão simples assim. Com diversas histórias envolvendo a mistura de fantasia com realidade, entrando num desenho em “Mary Poppins” ou um desenho vindo para a realidade em “Who Framed Roger Rabbit?”, “The Purple Rose of Cairo” vai um pouco além tanto nas questões profundas envolvendo a experiência subjetiva de um filme como nas peculiaridades cômicas desse fenômeno.
Na parte cômica, Allen trabalha o conceito de um personagem no mundo real de forma bem literal, ou seja, ele age exatamente da forma como foi escrito, não como um ser humano. Até serve como uma alfinetada nos que dizem que os personagens de um roteiro devem ser humanos, falar e agir como tais. Tom Baxter (Jeff Daniels) sai da tela como Tom Baxter, arqueólogo que volta de uma expedição no Egito para passar um tempo em Nova York, não como Gil Shepherd, o ator que o interpreta. Ele se veste como arqueólogo e não faz nada que não foi criado para fazer, nunca troca de roupa porque seu figurino é tão parte dele quanto todo o resto. Ele só tem do ator aquilo que deveria. Aliás, o ator existe! Quando a notícia vaza de que seu personagem fugiu da tela, ele vai até Nova York ver o que está acontecendo até que dá de cara com seu próprio clone. Ao mesmo tempo, o resto do elenco que ficou do lado certo da tela não pode continuar trabalhando porque falta alguém, então saem do personagem e ficam fazendo qualquer coisa enquanto o fugitivo não retorna. Esses e outros desses pequenos erros de programação que tornam “The Purple Rose of Cairo” divertido, melhor do que outra história de amor impossível.
O outro lado tem a ver com a metáfora a respeito do potencial de mudança da arte na vida de uma pessoa. Há quem diga que é apenas diversão ou distração, assim como há artistas que acham que suas obras vão engendrar uma revolução sociocultural e mudar o mundo. Existe um meio termo entre presunção e subestimação: a possibilidade de que, sim, a arte pode despertar uma mudança no espectador de alguma forma. Pode ser uma idéia nova que ele nunca teve, um ponto de vista diferente sobre uma situação conhecida, inspiração para tomar alguma atitude ou até mesmo para criar um trabalho artístico tão relevante quanto o assistido. “The Purple Rose of Cairo” gira em torno, principalmente, do fato extraordinário de um personagem escapar da tela de cinema, mas tudo que a protagonista vive com ele e a bagunça que ele causa têm um impacto considerável na vida da moça, conseqüências diretas. Não é como se houvesse uma moral da história por si. Por ser um filme sobre filmes, é quase como uma ilustração literal de como às vezes só é necessário um empurrãozinho para a mudança acontecer. Por que não poderia vir de uma obra de arte?
Além do mais, “The Purple Rose of Cairo” é um belo trabalho de época. Ambientado na Nova York dos Anos 30, numa época em que o entretenimento era um tanto mais limitado que hoje, ele consegue criar um cenário crível de cidade antiga, vazia e mais simples; até um tanto mais morto e monótono, em que que a vida era trabalho e descanso e nem televisão existia. Particularmente interessante é o ponto de vista de classe média baixa, ou classe trabalhadora, explorado por Woody Allen. Diferente de muitos outros trabalhos, inclusive o longa-metragem fictício de onde o personagem sai, é mostrada gente de grupos sociais que não a elite bem de vida. Essa é uma obra diferente do que esperava do diretor e positivamente surpreendente por ser uma história tão fechadinha, como gosto de colocar às vezes, em que nada parece ser gratuito ou desnecessário e a mensagem é passada com clareza, mas não em demasia.