Christopher Nolan é um dos diretores mais formidáveis dos últimos tempos. Seus projetos, além de apreciados por ambos crítica e público, são frequentes sucessos de bilheteria. A Trilogia do Cavaleiro das Trevas traz ótimos exemplos de obras acessíveis e sérias por retratarem um personagem popular sob uma visão realista e sóbria, diferente de outros trabalhos do gênero com foco no espetáculo. Depois de passar por super-heróis, shows de mágica e planetas distantes, Nolan foca sua atenção em terreno familiar: a Segunda Guerra Mundial. Não de uma forma comum, mas centrando-se numa das maiores evacuações do conflito, quando os planos deram errado e milhares tiveram de recuar para lutar outro dia.
Com a investida do exército alemão na Bélgica e Holanda, os exércitos francês e britânico logo se encontram encurralados. A ameaça do exército alemão projeta sua sombra na terra enquanto a força aérea dificulta a evacuação pelos céus. Sobra a única opção sensata de bater em retirada. Cerca de 400.000 soldados abrigam-se na praia de Dunkirk esperando transporte de volta para casa sem saber se um dia chegarão lá. Com recursos cada vez piores, os Aliados retornam carregando nas costas a culpa de terem falhado seu país em combate.
“Dunkirk” pode facilmente sofrer um preconceito parecido com o de “Jackie“. Este último trata sobre o assassinato do Presidente Kennedy de um jeito diferente do esperado. Os eventos são recontados pelo ponto de vista de sua esposa, Jackie Kennedy, que dá muito mais atenção para as consequências mentais sofridas que para os detalhes da morte em si. De cara, não parece ser a abordagem mais interessante de um evento como esse. O filme de Guerra de Christopher Nolan, apesar do gênero, não apresenta nenhum grande conflito. Sem tanques de guerra, jipes ou batalhões organizados estrategicamente, apenas uma grande operação de fuga de milhares de tropas depois de um grande fracasso. Da mesma forma, essa não parece ser a coisa mais interessante para abordar numa guerra. Assim como “Jackie“, uma proposta pouco atraente não passa de uma primeira impressão errônea sobre um grande filme.
Em comparação com o clichê de guerras, fugir de uma batalha é o exato oposto de agir como um guerreiro; tomar uma saraivada de balas e matar uma dúzia de inimigos com as mãos antes de cair morto, glorificar a pátria fazendo o trabalho de uma dezena de homens e trazer a vitória mais para perto. Exemplos grosseiros à parte, não é fácil usar o conceito de soldados em fuga. Se fosse um número reduzido, talvez seria mais fácil representar uma luta pela sobrevivência num ambiente hostil — similar a “O Pianista”. Um exército inteiro já é outra história, mas não um obstáculo para Christopher Nolan. Diferente do conflito individual ou centrado num grupo menor, a presença de uma multidão possibilita que um sentimento global, uma atmosfera seja estabelecida. A espera pela salvação traz uma infestação de sentimentos negativos, desesperança e insucesso. Existe uma insegurança universal que mata qualquer status de heroísmo e patriotismo. Cada soldado é reduzido a um ser humano de farda preocupado com sua sobrevivência, derrotado pelo fracasso em seu dever e aterrorizado pela idéia deste ser o último ato em vida. Por tantos homens estarem numa realidade similar, não há um herói ou protagonista em “Dunkirk”. Nem Mark Rylance, nem Tom Hardy, nem Fionn Whitehead. Os três representam partes diferentes de um acontecimento gigante, cuja desolação era global ao passo que as atitudes de cada não poderiam ser mais diferentes.
Transportar centenas de milhares de soldados não é tarefa simples. Não era possível mover meia nação e quebrar a logística do país para salvar os soldados, ainda que fossem muitos. A solução foi se virar com o que havia disponível: três aviões, barcos militares e várias pequenas embarcações civis para fazer a travessia da praia de Dunkirk até Dover, na Inglaterra. Ao focar nestes três núcleos em adição aos soldados na praia, Christopher Nolan demonstra sua competência como diretor de forma eficiente e elegante. São imagens que capturam a ação de forma igualmente bela e prática, dando atenção aos detalhes de cada situação e estabelecendo a geografia de eventos simultâneos. Cada núcleo com suas próprias características únicas.
Os soldados na praia estão imersos em sua própria inutilidade de não poder fazer muito para sobreviver, sempre vulneráveis à alguma ameaça externa mais forte que eles. Submarinos, tropas, artilharia e principalmente a força aérea plantam o medo a cada vez que frustram as tentativas de fuga. Por sorte, há uma pequena resistência aliada nos ares para reduzir danos, agindo ativamente para impedir que os soldados desamparados vivam. Ainda nessa proposta de partir para a ação, o dono de um barco decide comandar seu próprio resgate quando não cede sua embarcação à marinha. São três momentos diferentes de um mesmo grande acontecimento, todos bem representado pelas lentes de Nolan. Aviões se beneficiam de ângulos variados, que acompanham a ação de dentro da cabine, de cima das asas e de longe para aproximar a audiência do combate e ilustrá-lo claramente. Tudo fica um pouco mais pessoal dentro do barco civil, o qual envolve um homem e duas crianças entrando de cabeça na guerra, e ainda mais íntimo quando o assunto envolve seres humanos no limite de sua sanidade, trabalhando noções psicológicas de imoralidade nascida sob pressão, desilusão e até um tipo de solidão do indivíduo que compartilha sua desolação com tantos outros milhares de pessoas.
Embora os acertos sejam dominantes, não dá para dizer que “Dunkirk” é livre de defeitos. Não o colocaria entre os melhores de Christopher Nolan, fato que, por sua vez, não impede que o produto final esteja muito acima do que se vê por aí. O maior problema desta história de guerra é o mesmo elemento que permite ao diretor mostrar sua competência em ocasiões diferentes: colocar várias coisas acontecendo ao mesmo tempo. Por conta deste fato, às vezes há um pouco de confusão na organização dos eventos. Ao mesmo tempo que um avião britânico está caçando uma aeronave alemã, o barco dos civis está resgatando gente no mar. A Direção deixa bem claro que os dois eventos ocorrem em paralelo, pois os ângulos de câmera vindos do mar, por exemplo, retratam o ponto de vista dos civis olhando para o céu e vendo o que se passa. O problema não está no desempenho do diretor, embora evidencie ainda mais os problemas de outra área.
A culpada é a Edição, que trabalha contra-produtivamente à melhor compreensão dos fatos. São coisas acontecendo ao mesmo tempo e, no entanto, “Dunkirk” apresenta sequências cronologicamente conjuntas em justaposição. Em outras palavras, o resgate marítimo é apresentado do começo ao fim seguido da batalha inteira nos ares, embora aconteçam juntos. Há um pouco de confusão. não o bastante para afetar a compreensão do que acontece por ainda ser totalmente possível entender a cronologia. Mesmo assim, não acho que seja a forma mais inteligente de mostrar acontecimentos simultâneos, pois o espectador é conduzido de um ponto a outro mais adiante na linha do tempo e depois de volta para trás. Uma pena, já que a Direção dá diversas brechas para que as duas sequências fossem intercaladas sem afetar noções de geografia. Ainda há outros problemas menores provenientes do foco exagerado de mostrar o sofrimento e fracassos repetidos da retirada britânica, o que acaba resultando num questionamento dos sucessos eventuais. Dentre estes deslizes, o fato de certas ameaças surgirem e desaparecerem sem haver uma explicação lógica para tal desaparecimento.
Embora parta de um ponto incomum quando se trata de guerra, “Dunkirk” impressiona por transformar um conceito pouco atraente numa grande história. Explorando os temores de soldados que supostamente deveriam proteger e a coragem dos cidadãos que deveriam ser protegidos, o longa inverte as convenções de gênero para trazer um conto em que o conflito não se apresenta na forma de grandes batalhas e violência generalizada, mas psicologicamente. Apesar de seus defeitos, ainda é um grande filme.