Como deve ter sido assistir a “Mary Poppins” em sua época? O cinema tem vários exemplos de filmes quebrando paradigmas e causando furor em um público desavisado. A primeira vez que o preto branco cedeu lugar às cores, quando os atores passaram a ser ouvidos, a visita à uma galáxia muito distante… São inúmeros os exemplos, em maior ou menor grau. Ver este clássico da Disney atualmente faz pensar em qual foi a reação do público, principalmente das crianças, de presenciar uma história sobre fantasia usando um número incontável de truques para transformar a simples aventura em uma experiência cinematográfica memoravelmente mágica.
A casa dos Banks passa por apuros. Caiu a última gota d’água para a babá de Jane (Karen Dotrice) e Michael (Matthew Garber), os filhos da família, quando eles fogem dela durante um passeio ao parque. Ela não agüenta mais suas travessuras e decide que não vale a pena, então pede a conta e entra como mais um item na lista de babás desistentes. O austero George Banks (David Tomlinson) decide resolver o assunto com as próprias mãos, buscando uma moça severa para fazer as crianças entrar na linha querendo elas ou não. Mas quem desce das nuvens e aparece em sua porta é Mary Poppins (Julie Andrews), que tem uma coisa ou duas para ensinar às crianças com seus métodos magicamente peculiares.
Uma casa com problemas familiares, uma babá chegando para dar um jeito nas crianças levadas e fazendo muito mais do que isso com suas capacidades extraordinárias, prometendo ir embora assim que o vento mudar. É um conceito simples e até replicado outras vezes no cinema; funcional e direto ao ponto e uma porta aberta para o moralismo de uma história com uma moral esfregada na cara da audiência. Considerando o público infantil e a época, é bem fácil imaginar como os planos poderiam sair pela tangente e perder todo seu impacto tão logo que o público e as tendências mudassem. Não é o que acontece. Se há algum aspecto que não envelheceu é a narrativa. Todos os erros óbvios são evitados a fim de que a experiência seja uma representação fiel ao conceito da obra: mostrar o que significa magia para Mary Poppins.
Dizendo dessa forma, qualquer coisa pode ser mágica. Um final de semana mágico entre amigos pode ser a reunião de gente que não se vê há anos por causa dos caminhos da vida; um encontro mágico pode ser fazer qualquer coisa com a pessoa amada e achar o máximo. Os exemplos são vários, enquanto “Mary Poppins” faz questão de mostrar que seu conceito é único. Há um pouco daquele toque clássico de fazer o que bem entender com um estalar de dedos, mas não exatamente; é mais brincalhão, gratuito e divertido do que apenas facilitar a vida usando habilidades especiais, como se transportar para lugares em um piscar de olhos ou comandar objetos para fazer tarefas. Não há lugar para praticidade quando o objetivo é tornar a vida um pouco mais divertida do que fazer o de sempre. Então quando o caminho seguido pelo roteiro parece tortuoso e vacilante, há um bom motivo.
Começa pelo fato dela não ser uma babá qualquer. Seu jeito de fazer as coisas não se limita a mandar as crianças ir dormir porque não se deve dormir tarde, é claro que ela tem que cantar até que eles caiam no sono sozinhos. E, curiosamente, é uma canção sobre o quê? Sobre ficar acordado. Psicologia reversa em seu auge, talvez não da forma mais sutil de todas, mas é assim que se encaixa uma canção entre várias de um repertório musical, além de mostrar jeito Mary Poppins de ser. Ela, com sua ética profissional única, gosta de guardar um pouco de espaço para ser afetuosa, séria e ainda rir por último quando desafiada. A autoconfiança extrema nunca flerta com arrogância porque de fato há competência no meio das decisões fantásticas — mesmo que o peixe que ela e as crianças deveriam comprar tenha ido para o espaço quando o roteiro esquece dele rapidamente.
O grande triunfo de Julie Andrews interpretar esse papel e ainda ganhar um Oscar é transmitir a sensação de que a moça é, simplesmente, um pacote completo em todos os sentidos. Ter poderes é apenas um toque especial sobre uma personalidade que, de alguma forma, faz o que deveria de um jeito que ninguém mais faria, doces e brincadeiras junto de lições importantes e necessárias. Ela realmente consegue ser tudo aquilo que o anúncio publicitário de Jane e Michael descreve, bochechas rosadinhas, docinhos e todo o resto. Basta ver a nem um pouco breve lista de qualidades feita pelas crianças para perceber que ser apropriada não é tarefa fácil.
Assim como o pai das crianças não sabe direito o que achar de toda a balbúrdia alternativa que acontece em sua casa, o próprio espectador pode se questionar sobre o propósito da história. Levianamente, parece que Walt Disney finalmente conseguiu os direitos do livro, depois de muita insistência, e adicionou todos os seus conhecidos toques no material, desenho animado junto de atores reais. Apropriado mesmo é dizer que ele consegue transferir a adaptar algumas das maiores conquistas de seu trabalho com animação na história dessa babá e, de quebra, moldar a narrativa apropriadamente. A estadia de Mary Poppins nunca foi para ser longa. Ela chega revirando a casa e seus costumes para ir embora quando tudo estiver diferente e é isso que acontece. Em vez de uma mudança leve e gradual, mais próxima do real, o filme escancara suas qualidades fantasiosas e faz o tempo da babá na casa dos Banks parecer a passagem de um furacão. Chega rapidamente, abala tudo e vai embora antes que alguém perceba o que aconteceu direito.
Quando as coisas começam a acontecer, elas simplesmente não param. Surpreendentemente, o formato musical Disney não domina tanto a estrutura da obra quanto imaginei que faria. Os números tradicionais são ocasionais, como de praxe, ao passo que a obra simplesmente não deixa a bola cair. Quando param de cantar, a dança continua e continua até que outra cena absurda comece e dê continuidade à energia de um número de canção e dança. Sempre algum truque na manga mantendo tudo em movimento. Mesmo assim, vale dizer que é preciso relevar um pouco as limitações técnicas de alguns efeitos, que claramente envelheceram e carecem do polimento de contrapartes mais recentes. Mas se isso diz algo, é apenas que a inventividade foi o valor central de “Mary Poppins” e ainda hoje impressiona por tamanha ousadia.