Finalmente o Império Disney chega a sua ruína. Ou não. Talvez um dramático começo de texto para tentar fazer graça depois de quase uma semana inteira sem postar no site porque a vida não tem facilitado. Exageros à parte, “Mulan” é até agora o mais próximo de uma unânime opinião negativa dos remakes da Disney de seus clássicos. Já tendo sido anunciado há um bom tempo, o público primeiro ficou surpreso e alegre ao descobrir que “Mulan”, não outro filme mais antigo, estaria entre as próximas refilmagens, depois esse sentimento mudou conforme mais notícias saíam sobre a produção. Finalmente chegou a hora de checar se é de todo mal mesmo.
Hua Mulan (Yifei Liu) tem dons desde cedo. Ela faz coisas que outras garotas de sua idade não conseguem e nem querem, a maioria delas estando preocupadas em cumprir seus papéis como mulheres de família, recatadas e moderadas nas atitudes e palavras. Mas não Mulan. Seus dons e talentos, vistos com reprovação, diferenciam a moça das outras e vem a ser inesperadamente útil. O Império Chinês é ameaçado por guerreiros Rouran e um homem de cada família é convocado para o exército, fazendo Mulan se disfarçar de homem para substituir o pai enfermo na função.
Não ouvi uma pessoa elogiar “Mulan”. Ainda está para aparecer alguém que diga que gostou de fato, mesmo com todas as mudanças da animação original. Minha surpresa foi ver que a crítica foi mais piedosa aqui do que com “The Lion King“, que tem uma nota média quase um ponto mais baixa no Rotten Tomatoes. Por outro lado, a audiência foi na contramão e deu 88% de avaliações positivas para a aventura dos leões e apenas 51% para a lenda da guerreira chinesa. O que acontece? Mais um embate entre crítica e audiência, é claro, além de um tornado de problemas que tornaram o lançamento desse filme o mais catastrófico que vi em muito tempo.
Tendo assistido ao desenho, é inevitável traçar comparações. Assim como em vários casos de refilmagem, os paralelos passam a fazer parte das discussões e podem importar muito ou não na impressão sobre o produto novo. Por exemplo, reclamar de uma mudança só porque ela existe é um apontamento fraco, pois nem sempre é a intenção recriar o original, seja por questões de adaptação que tornam impossível ou por decisões artísticas. Ironicamente, refilmagens quadro a quadro costumam ser criticadas por sua própria proposta de não acrescentar nada ao que já existia. É sempre interessante ponderar para que as mudanças vêm, em especial porque às vezes uma abordagem nova não atrapalha quando é bem justificada. Pois isso não acontece em “Mulan”.
O primeiro choque vem quando se descobre que não há mais música. Pois é, um filme da Disney sem as canções que os tornaram famosos e cimentaram o jeito Disney de fazer animações, com os personagens cantando quem são, de onde vieram, o que querem e o que sentem. É só analisar as músicas mais famosas de qualquer animação: “The Lion King” possui “O Que Eu Quero Mais É Ser Rei” e “Beauty and the Beast” tem “Bela” e “Gastão” para explicar exatamente quem são herói e vilão e seus objetivos. A princípio, sem problema, pois “The Jungle Book” também cortou várias canções e permanece um filme muito bom. Já “Mulan” substitui isso com doses de seriedade inflexível, que levam a sério toda e qualquer cena a ponto dos pouquíssimos momentos de humor parecerem fora de lugar, além de naturalmente sem graça. Não que seja impossível ou inadequado contar a mesma história de forma mais sóbria. A execução peca por passar a impressão de que se leva a sério demais e força esse tom em vez de ostentá-lo naturalmente. É como a diferença entre tentar muito ser engraçado e apenas ser.
A falta da música com certeza não seria sentida se o que entrou no lugar fosse tão bom quanto. Acontece a mesma coisa com outras omissões e substituições. Mushu, o carismático dragão que acompanha a protagonista, cede lugar a uma fênix-pipa inanimada que aparece um vez ou outra só para servir como símbolo narrativo muito pouco sutil. Não é boa barganha. O mesmo vale para a explicação mística para Mulan ser distinta como é: seus poderes vêm do qi que ela possui desde criança. Isso fez com que as pessoas sentissem falta de seu crescimento através do empenho, treinamento e força de vontade, como antes. É neste momento que o espectador percebe que entende mais de narrativa do que acha que sabe, quando sente que ela perde força quando não desenvolve a jornada entre um ponto e outro. Outros detalhes sequer têm justificativas. Como explicar o fato de praticamente todos os personagens serem rasos e desinteressantes? Os três soldados trapalhões, o dragão e todos os outros que traziam toques bem vindos não só de humor mas também de personalidade para o elenco. Tudo pela seriedade?
Se for para ser assim, então que haja motivos para levar a sério. Dizer que o grandioso Império Chinês está sob ameaça e mostrar as forças inimigas em sua totalidade de vinte soldados é risível. Onde está o exército infinito para derrubar a nação? Mas não há o que temer, pois o Império está preparado para conter essa ofensiva… com vinte soldados seus. É um tanto patético ver que a tal guerra não é bem isso, parecendo mais uma versão limitada por orçamento, o que nem deveria ser problema quando há 200 milhões de dólares envolvidos. De tudo isso, sobra pouco para elogiar. A ação consegue ser decente o bastante para entreter, com as acrobacias mais ou menos no estilo de filmes orientais como “O Tigre e o Dragão“, sem chegar no mesmo nível, claro. Há momentos e momentos, idéias interessantes perdidas entre outros momentos não tanto. A adição de magia que vem com a personagem da bruxa é interessante e fornece o mínimo de justificativa para que os inimigos tenham alguma vantagem, exceto quando ela abre a boca para verbalizar a grande mensagem que tem para passar. Subtexto para quê.
Se existe algo como má sorte de cineasta, então esse é o exemplo quintessencial. Em um mercado incerto como o do cinema, em que ninguém sabe de nada, de estrelas cadentes e ascendentes diariamente, de escândalos e fofocas se colocando entre aqueles que tentam fazer carreira de algum jeito, ainda há a chance de algum infortúnio externo estragar tudo porque sim. Não vou dizer que “Mulan” sofreu apenas pelas circunstâncias infelizes ao seu redor, pois é um filme fraco por si que talvez não fosse longe de qualquer forma. Dificilmente seria essa a refilmagem definitiva da Disney. O problema é que agora é impossível saber como seria o desempenho na bilheteria com o boca a boca mais amplo do que o atual. Ficaria difícil para um filme fazer sucesso com uma pandemia fechando todos os cinemas, com polêmicas de bastidores, mudanças danosas e a Disney tentando cobrar uma assinatura mais 30 dólares para poder assistir. Só não é a injustiça máxima porque de fato não se perde muito.