A princípio, “O Tigre e o Dragão” me vinha à lembrança principalmente por estar na televisão aberta durantes as noites vez ou outra. Mais na época em via TV, quando criança, lembro de assistir ao filme em que as pessoas lutavam um tipo de kung fu voador com espadas e lanças. Depois ia para a escola falar entusiasmadamente com os amigos sobre o que vi e comentar como as lutas de espada muito diferentes de qualquer outra que costumávamos ver, especialmente considerando que “O Senhor dos Anéis” era um lançamento recente. A obra de Ang Lee não tem nada a ver com a familiar fantasia ocidental do troll cobrando pedágio na ponte, das armaduras de metal e dos feiticeiros de barba longa e chapéu comprido.
Não foi para menos, então, que “O Tigre e o Dragão” fez tanto barulho em seu lançamento. Além de diferente, a obra foi acompanhada também de competência na introdução de algo que ainda não havia sido feito tão bem no Ocidente — inclusive na bilheteria. Quatro vitórias no Oscar e outras seis indicações vieram na seqüência, inclusive uma indicação a Melhor Filme a despeito de ser uma produção estrangeira. Com novidade aliada à eficiência, o público teve a oportunidade de conhecer um modo diferente de executar o conceito de filme de artes marciais e um pouco mais do talento de Ang Lee por trás das câmeras. O diretor teve sua primeira indicação ao Oscar aqui, a antecessora de outras duas vitórias nos anos seguintes. Todo o alarde financeiro e crítico é, de fato, mais que justificado em um trabalho com notável investimento em ambos ação e enredo.
Li Mu Bai (Yun-fat Chow) é um mestre de artes marciais em conflito. Depois de um tempo de meditação e contemplação, um período de reflexão sobre feitos do passado e perspectivas de futuro, ele volta sem muitas respostas, mas decide assumir seu fracasso em vingar o assassinato de seu antigo mestre por Jade Fox (Pei-pei Cheng) e repassar a posse de sua espada lendária para outra pessoa. Yu Shu Lien (Michelle Yeoh) se encarrega de levar a espada a seu destino e assim o faz. Pouco tempo depois, ela é roubada por um ladrão que dá início a uma aventura inesperada.
Devo admitir que em um primeiro momento estranhei as batalhas altamente estilizadas. Era estranho como os lutadores do nada levantavam vôo como se dominassem o vento e o fizessem trabalhar para si. E não de um jeito como estou acostumado a ver, como pulos altos de indivíduos muito fortes ou até os pulos duplos de video-games, nos quais um segundo impulso surge em pleno ar. Em “O Tigre e o Dragão”, é como se arbitrariamente desligassem a gravidade e as pessoas passassem a flutuar. Soa esquisito, certamente, mas não incomoda porque essa primeira impressão não é longeva. Logo fica claro que se trata de uma questão de estilo e de identidade, de algo que não tenta emular ou apenas revisar padrões já conhecidos. Assim como um prato desconhecido a ponto dos ingredientes serem incomuns, tudo se esclarece quando as barreiras do estranhamento abaixam.
Essa discrepância é interessante porque eventualmente este mesmo aspecto criticado vem a se tornar a melhor parte de “O Tigre e o Dragão”. Nunca deixa de ser curioso ver algo tão diferente, porém o resto das lutas não demora para chamar atenção para si com suas coreografias suaves e harmônicas, leves na execução dos movimentos e diretas, sem esquecer que cada golpe busca derrubar ou incapacitar o oponente. Caso contrário, seria apenas uma dança sem nada em jogo, uma alegoria artística sem impacto ou valor real para a história. Ver dois personagens fingindo que estão lutando seria como assistir uma paródia ou sátira tentando se passar pela coisa verdadeira, então o filme usa apenas a fluidez dessa arte para transformar os confrontos em balés marciais; são pessoas cujo treinamento, habilidade e talento denotam precisão, nenhum esforço em vão ou movimento em falso.
Mais do que isso, a direção de Ang Lee se faz especialmente evidente nas tomadas longas e sem cortes, sem nenhum artifício tentando ofuscar, maquiar ou enganar o espectador sobre o que está acontecendo. Claro, uma respeitável parte disto se dá pelo trabalho de coreografia e memorização dela por parte do elenco. Afinal de contas, são os atores que estão em frente às câmeras fazendo todo o trabalho duro. No entanto, a decisão de seguir este caminho mais árduo e, mais adiante, capturar seus resultados dramaticamente recai sobre o diretor. Lee abre mão da filosofia de encher um duelo de tomadas brevíssimas e de cortes durante a execução do movimento, trocando a perspectiva a cada pouco, em prol de seqüências nas quais é possível ver várias trocas de golpes do começo ao fim. “O Tigre e o Dragão” veio muito antes da infeliz prática vista em “Game of Thrones” tão freqüentemente, por exemplo.
Quanto à história, ela não brilha tanto quanto à inventividade de cenas de luta sublimemente executadas, o que não significa qualquer tipo de desfeita ou problema. Sim, ela se arrasta um pouco vez ou outra, mas seus pontos fortes são mais que o bastante para tornar esta experiência em mais do que ação tecnicamente competente. Os personagens possuem algo em jogo desde os primeiros momentos, relações entre si e assuntos mal resolvidos que alavancam os eventos que vêm depois, os quais lidam diretamente com tais questões pessoais. Assim, nada existe em vão. “O Tigre e o Dragão” introduz uma mudança de estilo acompanhada daquela eficiência elementar que muitas obras aspirantes à vanguardistas carecem, a presença de estrutura, tridimensionalidade e domínio da parte técnica, apenas citando alguns elementos. Ser diferente por si certamente não teria o mesmo sucesso.
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Ótima análise do filme, muito bom!