Esses dias, sem saber direito ao que assistir, um amigo sugeriu que víssemos Guy Ritchie. Alguma coisa do Guy Ritchie. Qualquer coisa dele. Certo, simples o bastante para uma sugestão e abrangente a ponto de fornecer algumas opções. Decidimos voltar para o começo de sua carreira e ver como ele chegou em “Aladdin” e “The Man from U.N.C.L.E.“, então por que não o primeiro longa-metragem de todos? Aparentemente, “Lock, Stock and Two Smoking Barrels” é o filme prototípico do diretor, aquele com o conceito básico que viria a se repetir em outros trabalhos seus sobre bandidos e trapaceiros tentando passar a perna um no outro. Só falta um polimento.
Tom (Jason Flemyng) é filho do dono de um popular pub da região. Ele e seus amigos Soap (Dexter Fletcher), Eddy (Nick Moran) e Bacon (Jason Statham) cometem pequenos delitos na cidade, tentando ganhar a vida com trapaças e vendendo mercadoria roubada na rua enquanto tentam ficar longe do faro da polícia. A grande jogada da vez é tentar entrar em um jogo de pôquer de alto nível depois de juntar 100 mil libras como entrada. Tom entra no jogo e perde tudo que tem e mais um pouco, colocando ele e os três amigos em dívida com um chefe do submundo local famoso por cobrar suas dívidas sem dó.
“Lock, Stock and Two Smoking Barrels” é o que se pode esperar de Guy Ritchie em muitos sentidos. Esse primeiro, em especial, traz o diretor numa fase que já mostrava sinais dos temas que voltaria a abordar no futuro, bandidos e golpes, gente tentando sair por cima com algum plano mirabolante que dá muito, muito errado. A princípio, é um pouco difícil acompanhar quem é quem e quem faz o que, algo que não perdura porque logo fica claro que esse é o tipo de história em que personagem importa pouco. Todos são mais caricaturas e gente com função. Tudo que se precisa saber sobre os quatro protagonistas é que são jovens desastrados e sem sorte que entram numa enrascada. Há um chefão do crime, dois capangas inescrupulosos e dois outros peixes pequenos burros. Ah, e um dos principais é Jason Statham, o que é engraçado porque ele nem sempre parece Jason Statham; não como ele é conhecido hoje, o macho alfa estrela de filmes ação, está mais para um jovem que se parece com ele e não tanto ao mesmo tempo, como Mel Gibson em “Mad Max“.
Sendo uma estréia, encontram-se mazelas que freiam esforços criativos, como aquela insegurança de iniciante que o faz apelar para clichês ou técnicas tradicionais por medo de seguir seu caminho. Às vezes é uma intuição certeira que evita que a indulgência vá longe demais, no sentido de que alguns artistas se permitem muito e fazem o que querem sem nenhum apego aos princípios fundamentais de seu ofício, fazendo tudo em nome do relativismo que diz que não há regras e que tudo se pode em nome da arte. Nesse caso, não é certeira.
Acontece que Guy Ritchie vem de uma geração de diretores imediatamente sucessora de Quentin Tarantino, que em 1998 havia lançado “Reservoir Dogs”, “Pulp Fiction” e “Jackie Brown“, já com certo renome na indústria. A mazela de Ritchie em “Lock, Stock and Two Smoking Barrels” é parecer que está tentando emular o estilo de Tarantino em diversas cenas que seguem nos mesmos passos e nunca chegam lá. É um anti-clímax dos feios porque fica evidente que a emulação de estilo falha em sua proposta. Parece iminente o momento em que alguém vai sacar uma arma e pintar a parede de sangue com esguichos exagerados em câmera lenta, então chega a conclusão morna matando qualquer chance de sucesso.
O lado bom é que não há problema nenhum com o roteiro. É nele que “Lock, Stock and Two Smoking Barrels” brilha e consegue transcender sua ação truncada e ocasionalmente decepcionante. Melhor dizendo, é por causa dele que o filme se salva porque consegue ao mesmo tempo criar uma identidade independente da influência de outros cineastas. Sim, poderia-se argumentar que “Reservoir Dogs” também trata de personagens caricatos numa trama complicada, mas não é tão parecido assim. Existe originalidade na história de Guy Ritchie e, mais importante, competência. Ele consegue manter a coerência e causar algumas boas surpresas com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo. É uma porção de personagens sem muita caracterização ou desenvolvimento jogados de um lado para outro por um roteiro que só quer ferrar com suas vidas; são convenções da comédia, coincidência e absurdos em função de um caos que se reorganiza muitas vezes até chegar num final bem interessante. É como uma montanha russa: curvas, retorções e loops demais para explicar logicamente, não menos satisfatória por isso.
Só reclamo sem remorso da estética visual ou, em termos mais simples, da qualidade de imagem. E nem me refiro à quantidade de pixels. Mesmo em alta resolução, permaneço com a opinião de que “Lock, Stock and Two Smoking Barrels” é um filme feio. Simples assim. Não é algo a que eu assista e enxergue valor estético nas imagens, seja no trabalho da cinematografia, na iluminação de cenário ou na gradação de cor exagerada, típica dos filmes do final dos Anos 90 e começo dos Anos 2000. Os diretores pareciam empolgados demais com a idéia de usar um artifício mais acessível que nas décadas anteriores; os novatos, em especial, estavam loucos para usar e deixar sua produção modesta com uma cara moderna. É como o Instagram no começo: as pessoas fotografavam coisas aleatórias e colocavam um filtro. Parecia sofisticado, hoje é bem brega e ultrapassado.
Depois de um início confuso em que o diretor mais parecia estar se encontrando dentro da própria história, ele finalmente faz isso por meio dos caminhos caóticos do enredo, complicando a vida de absolutamente todos os personagens ao mesmo tempo e conseguindo se safar com a tal interligação de destinos mais adiante. Quanto a direção, resta a impressão que Guy Ritchie ainda estava travado, pois a ação nunca flui de fato e os momentos de maior indulgência estilística, de câmera lenta, quadro congelado e violência caótica parecem só caprichos sem propósito. Corrigindo essas questões perfeitamente aceitáveis para um primeiro trabalho, o que constituiria o tal polimento faltante, “Lock, Stock and Two Smoking Barrels” poderia ser um filme mais sofisticado como outros posteriores do diretor.