“Pulp Fiction” era melhor nas minhas lembranças. Depois de assistir pela segunda vez a uma das obras mais aclamadas de Quentin Tarantino, tive certeza que me lembrava dela melhor do que é de fato. Neste meio tempo entre assistidas, li e escutei várias impressões entusiasmadas apontando quão revolucionário e subversivo o filme é, como vai contra a maré ao mesmo tempo que adota uma postura revisionista e nostálgica sobre várias convenções de Hollywood. Na prática, o filme é tudo isso. Mas será tudo isso o bastante para justificar a reputação como um dos melhores filmes de todos os tempos? Talvez um dos mais importantes; melhores, nem tanto.
Vincent (John Travolta) e Jules (Samuel L. Jackson) são dois capangas que fazem o trabalho sujo de um chefão local. O terno e gravata e as pistolas bem lustradas indicam o mais alto nível de profissionalismo, mas para quem deveria seguir o estereótipo de assassino calado, eles falam demais. Seus trabalhos também dificilmente se encaixam no padrão. Numa noite, Vincent deve entreter a esposa de seu chefe e garantir que não tenha o mesmo destino da última pessoa que esteve em seu lugar. E isso é apenas o começo, pois o caminho deles ainda cruza com o de Butch (Bruce Willis), um boxeador decadente, o de dois assaltantes amadores e até de um bando de caipiras tarados.
Do que “Pulp Fiction” se trata, exatamente? Tentando esclarecer um pouco essa pergunta, o primeiro quadro do filme traz a definição do termo pulp: um tipo de revista em papel barato contendo uma variedade de pequenas histórias. Essencialmente, um apanhado de contos de todos os gêneros normalmente tratando de assuntos sensacionalistas e exagerados, produções centradas na exploração do clichê. Pode parecer o reduto do lixo artístico dedicado àqueles corajosos o bastante para gastar seu tempo — já que custavam pouco dinheiro — mas foram nelas que um dos maiores fenômenos do Cinema surgiu: o Noir. O gênero teve uma de suas origens, entre várias outras, nas publicações de Dashiel Hammett e Raymond Chandler neste mesmo tipo de revista, responsável pela popularização das histórias de detetive. Como em qualquer coisa, sempre há aquilo que se salva.
E onde a obra de Tarantino se encaixa nesta balbúrdia de gêneros? O próprio Tarantino admitiu que suas inspirações envolveram obras do Noir, com destaque para “The Killers“. Neste último, a trama gira em torno do assassinato de um homem que não tenta fugir de seu destino, entregando-se sem resistir aos dois assassinos que vêm para matá-lo. A execução é bem similar a uma feita por Vincent e Jules logo no começo de “Pulp Fiction”, porém esta não é uma mera homenagem perdida no meio do roteiro. Se fosse, seria apenas uma curiosidade que me entreteria por poucos segundos sem agregar muito. Ambas as histórias tratam de uma dupla de assassinos contratados. O Noir apresenta o modelo clássico: dois mal encarados, mal educados e de malgrado sem problemas em quebrar uns braços para conseguir o que querem. O longa de Tarantino traz algo similar visualmente e muito diferente nos atos: eles falam pelos cotovelos sobre massagem em pés, Big Macs e cerveja; dão um tempo antes de fazer seu trabalho porque ainda não está na hora. Apontar armas para os outros é como o compromisso banal de ir ao dentista na hora marcada.
Mas a história não se trata apenas de gangsteres. Como as revistas pulp, há espaço para o esportista voltando-se contra todos para conservar sua integridade moral. Tarantino explora este lado negligenciado por obras que se levam a sério, subvertendo neste exemplo o boxeador transformado em figura trágica de “On the Waterfront“. O suposto herói da história entra nessa posição desastradamente. Seu grande encontro com o vilão é puramente acidental, continuando por um caminho que definitivamente derruba por terra os mitos de heroísmo e antagonismo. Essencialmente, é o oposto de tudo que James Bond representa, por exemplo. Os vilões e capangas são excêntricos, mas ainda tipicamente malvados; Bond se safa das mais absurdas situações simplesmente porque ele é o Agente 007, sem nunca esquecer de arrumar a manga do paletó depois de toda a dor de cabeça. “Pulp Fiction” troca o jantar sofisticado com vinho rosé por hambúrguer, fritas e refrigerante. Não é sofisticado, mas é bom.
Então, não, nada neste filme é exatamente padrão e, ao mesmo tempo, é completamente reconhecível. “Pulp Fiction” é o ápice da sátira bem concebida. Funciona como “Friday the 13th Part VI“, que satiriza as convenções dos filmes anteriores e permanece essencialmente uma parte da série. Não é porque uma perseguição é tratada comicamente, com um manco desnorteado correndo atrás de outro, que ela é pior. Ser intensa e veloz nunca foi a intenção, basta a comédia funcionar. Como inúmeras pessoas já apontaram nos mais de 20 anos desde o lançamento, os personagens vivem num universo tipicamente hollywoodiano, que só poderia existir nos filmes. Mas essa aspecto cinematográfico-fantasioso se dá mais pela natureza das referências nascidas da cinefilia de Tarantino. Para mim, as menções de nomes como Marilyn Monroe, Jerry Lewis e Dean Martin importam pouco perto do material que serve de combustível para o motor desta obra. Idéias, modelos de idéia, estereótipos, clichês, cenas icônicas, conceitos populares. São estes detalhes que, quando revistos sob outro ângulo, dão substância ao que poderia ter sido uma rasa coleção de ícones populares.
Definitivamente não posso acusar “Pulp Fiction” de fazer mal aquilo que se propõe. Pelo contrário, ele é certeiro em sua escolha de coisas para desconstruir e ainda mais por criar personagens cativantes desta proposta. As opiniões que li ao longo dos anos reforçavam estes mesmos pontos que elogiei, mas nenhuma me lembrou de algo que já havia me incomodado na primeira vez que assisti. Depois de me impressionar com a ótima abertura ao som de”Misirlou” e “Jungle Boogie”, o filme continuou surpreendendo até que chega um momento em que tudo fica um tanto cansativo. Muitos filmes sofrem de uma lentidão — popularmente chamada de barriga — na metade do caminho, mas este tem a sua mais perto do final, super-estendendo-se até terminar de uma forma tediosa como nunca foi previamente. Cortar as últimas duas seções chega a passar pela cabeça, mas seria radical demais, dado que elas têm importância narrativa. Isso me levou a pensar que o problema não é com elas exatamente. Por comporem a conclusão de um longa de 2h34, acabam por ser alvos do cansaço construído ao longo de várias outras cenas menores que ficam tempo demais na tela.
Quentin Tarantino conhece seu material de trabalho e consegue dissecá-lo; identificar o que é inovador, comum, ignorado e popular. Sabendo de tudo isso, ele torna tudo uma brincadeira, pausando a ação para falar de assuntos aleatórios como nenhum outro filme tradicional faria e, no processo, levando vários jovens cineastas a achar que fazer isso é fácil, como se não houvesse estrutura ou embasamento por trás de toda a informalidade. A verdade é que a sátira é tão difícil de criar, se não mais, do que um trabalho sério. Por trás de todos os truques cartunescos de “Pulp Fiction” há um conhecimento imenso do cinema como técnica e como arte. O resultado, por fim, é muito satisfatório e criativo, uma amálgama orgânica e consistente de um pouco de tudo da cultura popular, mas não evita a impressão de que é tudo isso por tempo demais.