Este é um começo de texto clichê falando do curioso ano de 1984 na premiação David di Donatello. Dois grandes filmes chamaram a atenção naquela noite, levaram alguns prêmios e levaram inclusive o mesmo prêmio. De três indicados, dois venceram “Melhor Filme”: “E la nave va” de Federico Fellini e “Ballando ballando” de Ettore Scola. Apenas o segundo chegou ao Oscar, entretanto, indicado pela Argélia enquanto a obra de Fellini ficou de fora. E de tudo que pode soar estranho sobre essa situação, só não posso dizer que houve surpresa de minha parte com a esnobada de Fellini no Oscar, pois “And the Ship Sails On” — título americano — com certeza não está entre seus melhores filmes.
A morte de Edmea Tetua desfere um golpe forte em todos aqueles que a admiravam e amavam. Sua magnífica e inexplicável voz deixa de ser ouvida e vive apenas na memória daqueles que não poderiam esquecê-la nem se desejassem. A idolatria segue na morte quando um grupo de artistas, amigos e admiradores se reúne para cumprir o último desejo da cantora de ter suas cinzas espalhadas no oceano da ilha onde nasceu, Erimo. Personalidades excêntricas e um jornalista cobrindo o evento tornam a viagem mais que uma formalidade celebratória quando seus caminhos cruzam e produzem resultados burlescos.
“And the Ship Sails On” é mais um experimento de cinema do que uma história tradicional. Um experimento não, pois o artista já estava há tempo demais em seu ofício para dizer que estava tentando coisas novas e mudando seu estilo. Esse é um dos cinco últimos trabalhos de um diretor que vinha trabalhando desde os Anos 50. Assim, é mais apropriado chamar isso de um passatempo cinematográfico de alguém que teve paciência e amor de permanecer no ofício por tanto tempo. Com seus grandes eventos da trama podendo ser colocados em poucas linhas, o filme busca seu conteúdo no espaço entre eles, naquilo que costuma conter as chamadas irrelevâncias por não levarem a história para frente. Nas mãos erradas, sim, tal produto da casualidade poderia constituir algo desinteressante. Isso,não é algo aplicável aqui.
Esse está longe de ser o melhor filme de Federico Fellini e ainda mais longe de ser esquecível. Não posso deixar de comentar que, defeitos à parte, algumas seqüências de “And the Ship Sails On” entram imediatamente para o domínio das memórias duradouras junto com outros momentos inesquecíveis de obras melhores e de obras piores também, pois até as ruins são lembradas por seus fiascos. São tantas cenas tão diferentes que não é possível identificar um padrão por trás do seu sucesso. O elemento comum das mais competentes é a capacidade de trazer um evento quase aleatoriamente, como uma anedota, e torná-lo subitamente cativante sem depender de algo vindo antes. É como subir num palco de show de talentos e depender de nada mais do que si para manter o interesse da audiência. Ora é um passeio pelo barco que vira disputa entre orgulhosos cantores de ópera unidos pela admiração à falecida, mas não tanto a ponto de esquecerem de seus egos; ora é uma visita à cozinha envolvendo galinhas e taças de cristal.
Algo que vejo ser comentado com certa freqüência é a presença de artifícios narrativos e visuais de “And the Ship Sails On”. Tudo começa com o preto e branco e a baixa taxa de quadros de um filme mudo simulando um registro fidedigno do embarque das pessoas no navio. Aos poucos a cor se manifesta e traz o filme para mais perto de 1983. Então o protagonista aparece às vezes falando com a câmera, direto com o espectador, dando ordens para seus cinegrafistas e o sentido se perde de novo. Ele vai de personagem para apresentador, mas como? Não importa muito. E quando até mesmo o set de gravação aparece? Fica a dúvida. É então que fica mais claro que “And the Ship Sails On”, além de divertidamente fluído na apresentação de suas dezenas de idéias, parece ser ainda mais divertido para Fellini, que tenta de tudo e coloca de tudo num mesmo trabalho porque sim. Ou melhor, por que não?
Seguindo pelo caminho da lógica básica, faria sentido preencher uma obra sobre viagem de navio com situações particulares sobre nada em especial; é assim que a maior parte do tempo se preenche, mais ainda com os dias parecendo eternidades a bordo de um navio vagaroso nos tempos sem tecnologia da década de 1910. No entanto, excelência não se mede apenas por uma premissa lógica. Não quando incontáveis momentos incríveis nasceram dos absurdos e em obras que desafiavam sua premissa inicial em seu desenvolvimento. É preciso de mais para tornar um filme bom. “And the Ship Sails On” traz no seu melhor o humor de cenas muito pitorescas para serem levadas a sério e, no seu pior, parecer um conjunto casual de idéias consideradas interessantes pelo diretor. Nem todas possuem o mesmo impacto ou servem de entretenimento tão bom como outras.
E é claro que isso afeta o todo. Como “And the Ship Sails On” é episódico por natureza, a qualidade geral vem a depender do desempenho dos segmentos individuais, com os mais fracos se fazendo notar mais quando o espectador olha para trás e percebe que foi uma aventura de altos e baixos e não no melhor sentido da expressão. Fazendo justiça, não há nenhum trecho ofensivamente ruim que sirva como um dia frio de chuva na praia. Alguns só parecem sem sentido, sem valor de diversão ou qualidades quaisquer dignas de nota. Se não é divertido, que seja triste e que seja intenso, nunca morno e passável.