É claro que o Brasil não decepcionaria na tradução de um título estrangeiro. “Les Choristes” traduz literalmente como “Os Coristas”, o que realmente não é a coisa mais atraente para vender um produto, então que escolhessem “O Coral” como uma alternativa mais neutra e tão específica quanto. Mas não, é claro que tinha que ter um ajuste para deixar mais romantizado, eis que nasce “A Voz do Coração”. Já não se trata mais do grupo ou de quem canta nele, agora é sobre o lado subjetivo da arte de cantar, a voz que toma forma nas cordas vocais e nasce no coração para tocar o dos ouvintes. Poético, não? Talvez seja o que os tradutores pensaram.
Dois amigos de longa data se encontram depois de muitos anos quando um deles volta para sua terra natal na França. Colocando o assunto em dia, os dois passam a relembrar de quando eram crianças e estudavam juntos no “Fond de l’Étang”, um internato para os alunos e um inferno para quem trabalha lá. As crianças se esforçam para tirar os funcionários do sério e mais freqüentemente que não são enviadas para o castigo, ao qual já estão acostumadas. Mas isso muda quando um novo professor, Clément Mathieu (Gérard Jugnot), chega na escola discordando dessas práticas punitivas e propondo um jeito de diferente de dar aula usando música.
Sim, é um filme francês. Alguns podem ler uma série de coisas nisso, uma produção européia ou estrangeira e portanto diferente do estilo americano de cinema, com várias regras sendo quebradas de propósito e um ritmo próprio que parece não se preocupar com as narrativas dinâmicas e enérgicas de Hollywood. Isso é parcialmente verdade. Depende muito da época e, principalmente, do diretor em questão. Como sempre, não dá para generalizar e dizer que todos são assim porque há um mar de possibilidades entre um estereótipo narrativo americano e um europeu, de um lado os dramas históricos e do outro os filmes-arte parcialmente incompreensíveis. “A Voz do Coração” é um exemplo desse meio termo, uma obra européia que só pode ser reconhecida como tal porque todos falam francês, o conteúdo e a abordagem poderiam se passar facilmente como um produto dos Estados Unidos.
Não é à toa que a primeira comparação que vem à mente é com “Dead Poets Society”, talvez a referência número um sobre um professor que entra na vida de seus alunos e as transforma para sempre. “A Voz do Coração” segue o mesmo princípio ao trazer uma turma de fazer qualquer professor pensar em trocar de profissão e um novo mestre que traz não só ordem mas também lições que nenhum deles sonhava em ter. Não só isso, pois o melhor personagem e melhor ator também é o tal professor, aqui interpretado belamente por Gérard Jugnot. A grande transformação é vista principalmente na turma, que vai de desorientada e destrutiva para algo mais próximo da maturidade e da sabedoria. Então de fato não seria absurdo dizer que esse é um filme europeu americanizado. Isso é um problema? Não necessariamente. Diferente de “I cento passi”, uma produção italiana americanizada, a competência na execução evita que a escolha de estilo possa ser apontada como responsável por um eventual fracasso da obra como um todo.
Também não quer dizer que isso não traga algum mal. “A Voz do Coração” por vezes parece previsível demais, especialmente quando termina e a estrutura narrativa geral fica mais clara, o que é melhor do que a previsibilidade que faz o espectador predizer os eventos conforme eles ocorrem. É mais um sentimento de já ter visto essa história em algum lugar. A conclusão que amarra todas as pontas e dá estados bem definidos a cada personagem, com cada um sofrendo as conseqüências pelos seus atos ou dos outros, alguns aprendendo coisas novas, assumindo novos papéis, entre outras mudanças. O professor vem, mostra que há um caminho melhor que a severidade para a educação e eventualmente mostra que tinha razão, indo contra todos os impulsos de punir os bagunceiros ao ser paciente e ensinando algo diferenciado.
E por que não poderia ser um americanizado bom? Sigo defendendo que o clichê bem trabalhado é muito melhor que uma tentativa falha de suposta originalidade. Se a história possui ao menos algo para chamar de seu — o esperado de um trabalho de respeito — e se agarra a isso em todas os desdobramentos do roteiro, familiar ou não, já é uma conquista louvável porque possibilita que a história tenha sua própria identidade. Se isso é a tal voz do coração, não vem ao caso porque seria um trocadilho horrível. A obra encontra sua originalidade aliando a trama do professor sábio a algo simples como seu método de ensino. Ele traz música para seus alunos e lhes dá propósito, uma tarefa que não é insuportavelmente chata como problemas de matemática. E o que há de mais legal do que cantar num coral? Associado freqüentemente às atividades de igreja oferecidas aos jovens que preferiam jogar videogame ou futebol do que cantar, pode não parecer o passatempo mais divertido de todos. Bem, entre isso e qualquer uma das opções de ensino, trabalho e punição de um internato dos Anos 40, é bem atraente.
O sucesso de “A Voz do Coração” é fazer com que tal tarefa pareça interessante para o espectador também, que é agraciado com várias cenas exalando beleza musical e afeição da produção pelo assunto. Nem se chega a pensar nos corais de igreja com todas as crianças vestindo roupas brancas engraçadas, a dedicação e conseqüente sucesso de tornar os momentos de cantoria os pontos altos da obra garante que não exista nada além de admiração pelo som de ouvir aquelas crianças fazendo algo juntas. Vai de algo desinteressante a algo com tanta importância para os personagens quanto para o espectador buscando bons momentos. Só isso faz do filme algo mais que um francês que vendeu sua alma para não ser mais uma trama fragmentada e inconclusiva.