“The Piano” conta uma história do Século 19 na Nova Zelândia. Ada (Holly Hunter), uma pianista psicologicamente muda, e sua filha Flora (Anna Paquin) saem de sua casa na Escócia para viajar até a Nova Zelândia por um casamento arranjado. Quem as aguarda é Alisdair Stewart (Sam Neill), um dono de terras bem sucedido que receberá as duas para morar em sua casa sem nunca ter as visto antes. Mas as coisas por lá não são boas como pareciam e o dia-a-dia logo se mostra um desafio quando o amado piano de Ada é deixado na praia e o relacionamento não flui naturalmente, pior ainda quando George Baines (Harvey Keitel), um vizinho da região, coloca os olhos na moça.
Uma pessoa poderia pensar em como seria ótimo ter um parceiro que não fala. Mudo. Zero reclamações, sem gritarias e chiliques ou respostas mal criadas, muito menos discussões intermináveis durando hora atrás de hora. A ausência de brigas teria sido a salvação de vários relacionamentos malfadados — mesmo sendo a razão do término para alguns — então é de se imaginar que bom seria não ter a pior e mais desgastante parte de um namoro ou casamento. “The Piano”, por sua vez, não demonstra esse tipo de preocupação específica e até frívola diretamente, sua narrativa é sofisticada demais para que os personagens verbalizem abertamente o que querem, quem são e no que pensam. Longe de um musical com uma seqüência dedicada especialmente para esclarecer as motivações alheias, a história tenta usar o mínimo para ser suficiente na comunicação das informações essenciais. Assim, a idéia de uma mulher muda ser fácil é sugerida em dado momento por um personagem sem a mínima noção da complexidade da situação.
Por um lado, essa sutileza pode trazer alguns problemas, pois alguns detalhes se perdem nas insinuações recorrentes da história, que sempre tenta mostrar em vez de falar conforme desfruta de uma economia comunicativa. Algumas motivações secundárias nunca ficam claras e por conseqüência parecem ser omissões errôneas, furos de um roteiro que esquece de abordar questões e deixa o espectador sem entender nada. Não é nada grave e nem toda cena de significado aberto se qualifica como falha, às vezes é intencional e funciona bem não explicando detalhe. De qualquer forma, não deixa de ser fonte de alguns momentos em que se para e se pergunta se aquilo faz sentido, matando a credibilidade de “The Piano” um pouco no processo.
O lado bom dessa tendência é mais aparente quando algumas coisas se fazem evidentes sem depender de uma comunicação emburrecida e simplista. É uma lógica relativamente fácil de entender: a protagonista é muda, então se comunica usando formas alternativas como suas próprias composições em seu piano. E funciona, por incrível que pareça. Abre-se espaço para a música tomar um lugar maior na narrativa como um aspecto elementar, mais do que complementar ou secundário; é a trilha sonora original de Michael Nyman aproveitando o título para se entregar às composições aterrorizantes e pesadas no piano e exaltar as ocasiões em que a personagem senta para tocar. Não é um artifício pobre, de colocar a personagem para tocar toda vez que quer falar alguma coisa, são momentos pontuais dedicados para louvar a música e tornar um evento especial na história, além de abrir oportunidades para Holly Hunter enriquecer sua atuação com outras formas de se comunicar.
Esse é um espetáculo dela. Nenhum outro ator ou elemento da obra faz frente forte exceto por um, mesmo assim sem chegar a tirar o pódio de Hunter como jóia de “The Piano”, o que é engraçado porque não é uma impressão imediata de que é uma grande interpretação, algo que chama atenção para si. Voltando para o exemplo da convivência facilitada pela inexistência de brigas, “The Piano” mostra que até isso é uma mentira. É uma noção de lógica frágil, pois não é como se a pessoa estivesse em coma sem reação e o resto da rotina continuasse normalmente sem brigas por dinheiro ou pelo destino da próxima viagem. Hunter, que toca o piano ela mesma em suas cenas, encontra formas bastante pungentes de demonstrar o que está sentindo sem proferir uma palavra, mesmo sem chegar a pegar seu caderninho e escrever as palavras literais, coisa que ela faz tão raramente quanto toca piano. Os olhares ao fundo da alma, a intensidade dos gestos, desde escrever no caderno até usar a linguagem dos sinais, tudo isso indica que não há nada fácil na falta de palavras de Ada.
Mesmo sendo uma pessoa que mais sofre com as atitudes dos outros do que com as conseqüências dos seus, Ada não é uma pessoa fácil, ideal ou perfeita. Longe disso. Ela e os outros personagens de “The Piano” são todos falhos em suas atitudes, variadas que sejam suas intenções, inclusive até mesmo a criança, que deveria ser a mais próxima da inocência. Há aquele que quer uma esposa, uma família para partilhar de sua fartura e constituir um núcleo unido de amor dentro do lar, mas não sabe como criar um ambiente de boas vindas adequado nem fazer o mínimo para deixar a pessoa confortável em um lugar estranho com uma pessoa estranha, nem um agrado reles. Existe o apaixonado que não sabe demonstrar seu afeto de uma forma diferente do abuso e de insinuações agressivas. E há aquela que fala pouco e também se comunica pouco, falando sempre menos do que deveria para criar um clima amigável, demonstrando apenas seu psicológico cicatrizado e escondido do resto do mundo.
Curiosamente, sempre ouvi falar menos de todos esses aspectos do que da parte visual de “The Piano”, o elemento que faz frente à atuação de Hunter. Em quase todos os livros de cinema mais novos há algum exemplo mostrando como a cinematografia e a direção da obra demonstram alto nível de compreensão da linguagem cinematográfica funcional e estética. E eles estão todos certos. Ambas beleza e praticidade se encontram em quadros que poderiam ser congelados e emoldurados sem prejudicar a qualidade e que também comunicam perfeitamente a solidão de chegar num país estranho e estar sozinha, de sentir que está fazendo tudo erado e também a dor física de algumas situações. São imagens que falam sem falar literalmente, exatamente como sua protagonista. “The Piano” talvez não seja a maior obra-prima de todos os tempos, mas de fato merece todo o aplauso pelas suas conquistas no campo visual sob a direção de Jane Campion, que extrai de seus atores o necessário para tornar a história uma sinfonia de desentendimentos assombrada por um subtexto obscuro.