“Uncut Gems” acompanha Howard Ratner (Adam Sandler) em sua espiral de decadência no submundo de Nova York. Um dia ele foi um homem de sucesso no mercado de jóias, tempo que ficou para trás e abriu espaço para um amontoado de dívidas feitas para quitar outras dívidas. Ganância, cobiça e luxúria disputam espaço num mesmo homem que ainda acredita poder dar um jeito enquanto o teto desmorona sobre sua cabeça. Nada como um empréstimo aqui, uma mentira e uma aposta inofensiva para acalmar a situação enquanto a solução não aparece.
A idéia é similar ao que se vê em “Sweet Smell of Success”. Pensando agora, arriscaria dizer que a inspiração foi bem próxima. A motivação específica muda de ambição de poder e influência para dinheiro e vício em apostas, já os métodos são mais ou menos os mesmos, brincar com perigo e lidar com gente soturna sem muito precaução. E é claro que tudo se complica até chegar num ponto sem volta, em que as enrolações e mentiras do protagonista finalmente o alcançam. Eis o modelo básico de progressão aplicado a um indivíduo que conserta um erro com outro erro. Ou ao menos tenta. Esse é um ponto forte, talvez o mais junto com a atuação de Sandler, que fortalece “Uncut Gems”. Estar próximo de um dos melhores Noir de todos os tempos tende a ser um elogio, em especial quando o roteiro acompanha mais do que as mesmas idéias e tem sucesso equiparável no desenvolvimento delas.
Muito se falou sobre a performance de Adam Sandler em “Uncut Gems”. Foi um pouco chato até. Não havia uma pessoa ou artigo que falasse da obra sem mencionar como ele deixou para trás seu longo histórico de filmes de comédia genéricos e é um ator competente apesar disso. Faltou pouco para alguém declarar uma era de ouro e dizer que o novo Daniel Day-Lewis já existia e estava apenas escondido. Bem, não foi a primeira vez que Sandler fez um bom trabalho. “The Meyerowitz Stories” e “Click” foram alguns dos elogiados. Mesmo assim, não deixa de ser incomum porque a maioria de seus trabalhos ainda está na comédia de gosto questionável. Mas será um trabalho extraordinário assim para demandar uma indicação de Melhor Ator no Oscar? A nível do próprio ator ameaçar fazer o pior filme de todos os tempos caso não fosse indicado?
Pois foi exatamente o que aconteceu. Nem Globo de Ouro, nem Oscar. E não foi nenhuma injustiça imperdoável. Todos os elogios e algumas nomeações em círculos de críticos não garantem a excelência da interpretação. Ela não é o avatar da genialidade. É boa? Com certeza. Caso contrário, “Uncut Gems” seria significativamente pior e talvez intragável porque o foco está cem por cento em cima de Sandler, beirando o princípio de que toda cena sem o protagonista é uma cena inútil. Seu jeito de agir propositalmente insano e fora de compasso demonstra um incômodo do jeito certo, por assim dizer, uma pessoa de atitude fora da faixa da normalidade pendendo para o lado chato. De novo, chato do jeito certo. O sucesso de Sandler é fazer o personagem ser interessante para a audiência enquanto ele claramente é um pé no saco de seus associados.
Howard Ratner é a alma de “Uncut Gems” e funciona quase como um estudo de personagens. Os conflitos do enredo orbitam em torno dele como produtos de sua personalidade problemática, mais para conseqüências de sua inconseqüência do que fatores externos antagonistas. Ele fala rápido e age como um demente, às vezes de propósito e muitas vezes porque não consegue evitar seguir sua programação irredutível. Para cada ocasião em que corta alguém porque não quer ouvir e não pode resolver no momento, há outra em que ele é um idiota sem nem perceber. Incapaz de parar por dez segundos no lugar porque tem de continuar fugindo ou porque isso já faz parte de si. Por mais que não seja a melhor atuação de todos os tempos, há grande mérito nela por encapsular a essência ansiosa da história e a transmitir com vividez a fim de que o espectador também sinta o desconforto de caminhar com mil problemas respirando seu ar.
Narrativa é definida no cinema por ferramentas de natureza audiovisual, usando o termo amplo, divididas em áreas responsáveis por elementos específicos; cinematografia e direção de cena exemplificando o lado imagético, design de som e trilha sonora representando o lado sonoro. Claro, há muito mais além disso, basta uma olhada nas categorias técnicas do Oscar para uma idéia melhor. A questão é que o enredo da obra, por mais competente que seja, ainda está sujeito ao sucesso dessas outras áreas. “Uncut Gems” perde vários de seus pontos nessa relação complementar entre áreas.
Em palavras menos complicadas, Josh Safdie e Benny Safdie demonstram novamente sua dificuldade de criar de um ritmo funcional. É quase uma repetição de “Good Time”, exceto que em raras vezes “Uncut Gems” tem o bom senso de desacelerar um pouco. Mesmo assim, nada justifica a primeira hora inteira ou mais ser como a bolsa de valores com cocaína no ar condicionado e ecstasy no filtro de água. Sim, é insano o ritmo. Não, isso não é bom. Dizer que o resultado é desorientador, frenético, difícil de acompanhar, acelerado e desconfortável não é o bastante porque esses podem ser adjetivos aplicáveis a um exemplo que funciona, o que não é o caso aqui. Chega a ser ridículo, na falta de palavra melhor, ver como a narrativa em toda sua multiplicidade é prejudicada pela avalanche de sons concorrentes, cortes rápidos, diálogos se interrompendo, focos de atenção momentâneos e mudanças de cenário. A idéia é mostrar que o protagonista vive num ritmo anormalmente acelerado, mas são necessárias apenas tantas cenas disso para transmitir a mensagem. Especialmente com a performance de Sandler fazendo tanto para comunicar isso.
Menos tempo funcionaria melhor, menos estímulos simultâneos talvez funcionariam igualmente bem sem soterrar sensorialmente o espectador. Com isso poderia nascer a gloriosa variedade, a alternância de intensidade, de ritmo e de tom que pode fazer a experiência ser tão mais fluída. Tudo bem, a intenção pode muito bem ser causar o desconforto, mas nem filmes de terror são 90 e tantos minutos de assassinato ininterrupto. Dessa vez me recuso a citar “Mad Max: Fury Road” como exemplo de ritmo acelerado bem administrado. Só fico grato de ter esperado o lançamento no Netflix em vez de ter assistido no cinema sem legenda.