Confesso que não me empolguei muito nas primeiras vezes que me falaram de “Don’t F**ck with Cats”. Alguns amigos falaram muito bem e contaram a premissa muito por cima, algo envolvendo um maluco que matava gatos na internet e passou a ser perseguido. Também eram amigos que haviam acabado de comprar um gato. E como na maioria dos casos, tudo relacionado a gatos e animais de estimação passa a se tornar mais interessante para eles do dia para a noite. Mas dessa vez estava errado, essa minissérie do Netflix é bem mais do que um produto para ambientalistas, furries e loucos dos gatos, há uma história e tanto por trás do que a idéia inicial sugere.
Talvez ela funciona tão bem porque a premissa básica parece ser centrada apenas na questão dos gatos, com o título também sugerindo que alguém que mexeu com gatos e se ferrou. Não é o tipo de crime que fica popular nos noticiários, matadores de animais na internet ainda estão bem atrás de crises econômicas, terrorismo e assassinos em série. A grande sacada de “Don’t F**ck with Cats”, por assim dizer, é que seu escopo vai um tanto além do óbvio e impressiona ao trazer uma reviravolta quando parece que tudo aponta para uma certa direção. Nada genial nem fora do comum, mas uma surpresa agradável vinda de uma obra que inicialmente não parecia ter muitos atrativos. De confecção simples e construção narrativa de molde investigativo, essa minissérie mostra como apenas um vídeo de internet pode desencadear eventos gigantes quase exclusivamente por conta de seu conteúdo.
Em 2010, surge um vídeo na internet chamado “1 boy 2 kittens”, derivado de outro vídeo famoso chamado “2 girls 1 cup”. Só que no lugar de duas garotas comendo e regurgitando fezes, dois gatinhos são colocados em um saco plástico a vácuo e sufocados até a morte. A indignação é automática e leva Deanna Thompson e John Green a criarem um grupo no Facebook para analisar o vídeo a fundo e tentar descobrir quem poderia ter cometido tamanho crime contra a decência básica. Eles só não sabiam exatamente onde estavam se metendo quando o caso se mostra bem mais doentio do que apenas achar um sádico assassino de felinos.
O que pode ser pior do que matar animais? Bem, é curiosamente comum encontrar pessoas que não chorariam no enterro dos pais, mas o fariam com a morte dos animais de estimação. Certo, talvez isso seja exagero. Outro paralelo é encontrar pessoas que vêem gente morrendo em praticamente todo filme que assistem e acham aceitável, enquanto param de assistir na hora se algum animal é morto na história. Pelo menos essa última parte tem um fundo de verdade, conheci duas irmãs que recusavam ver “American Psychopath” porque ele mata um cachorro. E isso valia para qualquer outra obra com cenas parecidas. “Don’t F**ck with Cats” tem sua origem mais ou menos com essas pessoas radicais, que aqui fazem um esforço extra em prol dos gatinhos. A ira delas é despertada porque alguém decide foder com gatos, ou seja, brincar com fogo. Em um ambiente como a internet, onde a única coisa sagrada são cachorros e gatos, especialmente filhotes, ameaçar isso é pedir para ter o ódio de um planeta sobre si.
Meu medo era que “Don’t F**ck with Cats” fosse apenas direcionado para esse público. Minha surpresa foi dupla. Uma delas aconteceu agora há pouco, quando outro amigo que adotou um gato recentemente disse que não vai assistir nunca porque se tornou muito sensível ao tópico, mesmo não havendo nenhum tipo de cena explícita em toda a série. Essa é uma qualidade para aqueles com medo de encontrar os vídeos sádicos sendo usados como chamariz. Não há nenhuma cena chocante aqui porque talvez a Netflix também não quisesse foder com gatos indiretamente ao divulgar os vídeos. A outra surpresa foi ver que a obra trata o assunto com o mesmo respeito que qualquer documentário ou filme sobre um crime normal, sem tentar direcionar a um público específico e limitar sua audiência de acordo com seus gostos. Um espectador que não se choque tanto com crimes contra animais ainda assim encontrará seriedade vinda daqueles que falam sobre o assunto.
E isso é extremamente necessário porque nem tudo é sobre gatos. Eventualmente, a história passa desse ponto e adquire uma magnitude maior e inesperada quando se fala na premissa de “Don’t F**ck with Cats”. Talvez isso fosse ainda mais impactante se a introdução não entregasse alguns detalhes dos próximos episódios desnecessariamente. Bastaria adaptar a introdução em cada episódio e evitar o caso de o espectador prestar atenção de verdade e perceber antes da hora em quais lugares a história chegará. Só não é mais grave porque no total são só três episódios, então é bem provável que o espectador sente e veja tudo de uma vez só. Mais cedo do que tarde os segredos se revelam e, dependendo do quão entusiasta de crimes famosos o espectador for, é até possível que os eventos transcorridos entre 2010 e 2012 já fossem conhecidos.
Parto do princípio de que spoilers, revelações de enredo, raramente estragam completamente a experiência. Imagino que “Don’t F**ck with Cats” ainda seja bastante aproveitável por sua narrativa clara e objetiva, explicando um outro lado da história inexistente na página da Wikipédia do crime, por exemplo. Lá só há a parte oficial da história, ou seja, os eventos principais de quando a polícia passou a participar ativamente das investigações. Aqui há uma versão bem mais aprofundada, em poucas palavras, da investigação. Os tais usuários irritados de internet mencionados antes têm um papel essencial na descoberta do assassino. Mais do que xingar no Twitter e reclamar sem fazer nada a respeito, um grupo de pessoas decide que é possível tentar chegar no responsável por aqueles atos e levá-lo à justiça, muito antes da justiça sequer estar envolvida.
Assim as entrevistas com John Green e Deanna Thompson, que tomam grande parte de “Don’t F**ck with Cats”, tornam-se importantes, pois é com elas que se compreende exatamente como as coisas aconteceram antes mesmo de se tornar um caso de polícia. A parte procedural da história se dá por meio dos relatos desses entrevistados e suas histórias de como uma pequena página de Facebook — da época em que as páginas tinham fãs em vez de curtidas — trabalhou unida para descobrir fatos a partir das pistas mais bestas: analisando um vídeo em qualidade horrível mostrando um quarto e seus objetos, do tipo de tomada aos interruptores e a colcha. Eles vão bem longe para um grupo de revoltados de internet. Reproduções das postagens, dos comentários e até do layout antigo do Facebook ocupam freqüentemente a tela, mostrando o progresso lento de um grupo com recursos limitados e motivação de sobra para pegar o culpado.
Há um ponto em que se decide falar sobre a possibilidade de tal grupo ter influenciado o criminoso a ir mais longe que seu primeiro crime, o vídeo dos gatos no saco a vácuo. Eles indagam que a atenção que deram ao caso, criando uma página e reunindo pessoas indignadas, criou a platéia que o assassino procurava. E então, nos últimos 30 segundos da obra, “Don’t F**ck with Cats” comete o infelicíssimo erro de estragar a experiência de mais de 3 horas em uma fração mínima disso. Do nada, gratuitamente, ridiculamente e levianamente tenta acusar o espectador do seriado do Netflix de ser responsável também. Atribui responsabilidade e julga sem mais. É a blasfêmia do mundo dos documentários encapsulada em menos de um minuto. O estrago só não é maior porque o resto da obra é de fato muito bom.