É estranho pensar que apenas em novembro de 2019 “Now, Voyager” recebeu uma remasterização seguida de lançamento em Blu-Ray. Tudo bem, não é o filme mais popular de todos os tempos ou da carreira de Bette Davis mas também não chega a ser absolutamente obscuro, pois foi a sétima indicação ao Oscar da atriz, além de ser um dos quatro destaques em sua página no IMDb. Enfim, é melhor comemorar que houve um lançamento do que criar caso pela demora para isso acontecer. Finalmente uma das melhores atuações da carreira de uma das maiores atrizes da história de Hollywood tem uma apresentação respeitável.
A vida de Charlotte Vale (Bette Davis) não poderia ser muito pior do que é. Ela passa os dias fazendo apenas as coisas que a mãe define como apropriadas. Os livros adequados, os hobbies adequados, as roupas adequadas, a aparência adequada, os modos adequados. Tudo escolhido a dedo sob o suposto propósito de proteger a garota e a colocar no melhor caminho sempre. A tirania maternal cobra seu preço do psicológico de Charlotte, que em seus 30 anos passa a demonstrar sintomas de uma crise nervosa absoluta. Então chega o Dr. Jaquith (Claude Rains) para tratar a garota e devolver a ela o poder sobre sua própria vida.
Mudando um pouco a ordem das coisas, devo começar elogiando a trilha sonora de Max Steiner antes mesmo de entrar em méritos de cinematografia, performances e roteiro. É com ela que “Now, Voyager” começa, algo comum em filmes da época por conta de os créditos serem iniciais ao invés de finais. A diferença é que a música de Steiner é brilhante e chama a atenção para si nos primeiros segundos, tirando do celular até mesmo o espectador que aproveita os créditos para dar uma última conferida antes do filme começar. E não é só no começo que sua presença agradável pode ser percebida. Sua tarefa de intensificar e trabalhar junto com a narrativa visual na criação de cenas poderosas é cumprida com a maestria de quem sabe quando é hora para apenas algumas notas acentuando o suspense ou um arranjo complexo para imergir o espectador na emoção em cena.
Normalmente costumo deixar para comentar sobre trilhas sonoras em curtos trechos no fim de uma análise, mas este é um caso que merece toda atenção por ser mais que um complemento secundário para a narrativa. Tão logo que a música introduz a audiência ao filme, as engrenagens do enredo começam a girar, a situação dentro da casa dos Vale começa a se revelar quando a matriarca, Windle Vale (Gladys Cooper), é avisada de que um doutor está chegando para ver sua filha, ao que ela responde dizendo que não há nada de errado com ela para um doutor ser necessário. Já fica claro que tal discordância não é algo que se trata com a mesma despreocupação de situações comuns, como quando uma pessoa tem uma opinião diferente da outra e não se deixa afetar por isso. Há algo peculiar sobre a tal disciplina daquela mãe sobre sua filha.
Bette Davis é a tal filha. Uma garota acima do peso, sobrancelhas grossas, roupas distantes de qualquer conceito de moda, modos introspectivos beirando o anti-social e, claro, não poderiam faltar os óculos redondos. Ela é assim porque a mãe julga tudo isso adequado e de bom gosto sem ter a mínima noção do que causa para a filha. Gladys Cooper traz sua contribuição à mesa na forma de uma pessoa irredutível, de opinião forte e sem espaço para flexibilidade. É uma interpretação poderosa testada logo no começo com a chegada do Doutor Jaquith, Claude Rains transmitindo confiança e orgulho profissional bem justificados através de sua postura e palavras escolhidas a dedo para desmontar as críticas da Sra. Vale. “Now, Voyager” é simples ao mesmo tempo que tem uma história de bastante conteúdo debaixo da superfície. De forma simples, é uma história de transformação que leva a uma história de amor improvável na seqüência antes de voltar ao assunto inicial da causa para uma transformação. Também é muito mais do que isso.
Se a cena do beijo entre Superman e Lois Lane pareceu gratuita em “Man of Steel”, como se fosse uma obrigação da história fazer isso acontecer de qualquer forma, é porque reinou o clichê de que deve existir romance na história de alguma forma. Se isso existe hoje é porque já acontecia desde os primórdios de Hollywood, com exemplos freqüentes vistos até mesmo em filmes respeitados, os ditos clássicos. “Now, Voyager” se esquiva dos clichês de paixões súbitas, intensas e inescapáveis de forma que nem parece produto de seu tempo. Era mais aceito antigamente colocar grandes romances nascendo com um profundo e longo beijo, uma paixão para todo o sempre surgindo quase do nada. Curiosamente, o que se encontra aqui é quase totalmente fora do padrão exceto pela intensidade do sentimento, todo o resto é um arranjo que até nos dias de hoje pode ser considerado completamente incomum por não ser algo platônico e desconhecido pela pessoa desejada, nem algo consumado no nível mais alto de paixão. As idéias do roteiro mostram como o sentimento pode assumir formas complexas e incomuns para continuar existindo, como o padrão não é o único jeito de fazer acontecer.
Bette Davis brilha em seu papel demonstrando como o conceito de desenvolvimento de personagem pode ser levado mais longe, chegando a ser uma transformação completa, interna e externa. O melhor é que isso é feito com todo o respeito à realidade psicológica, aquilo que seria plausível num cenário real. Pessoas mudam, sim, só não da forma como os filmes gostam de colocar às vezes. “Now, Voyager” traz todo o processo como algo natural e não linear, com alguns regressos aqui e ali para relembrar que nem tudo está nos eixos, sempre respeitando a pessoa que viveu tantos anos de uma forma e só depois passou a ser diferente. Talvez a caracterização inicial da personagem não seja a mais crível, mas não é isso que serve de demérito quando a atuação verdadeira se apresenta de outras formas não ligadas às aparências.
“Now, Voyager” recebeu três indicações ao Oscar nas categorias que de fato se exaltam na experiência. A atenção foi direcionada para o lugar certo, mesmo que a única premiação tenha sido para a trilha sonora de Max Steiner. A esnobada de Davis e Cooper é difícil de ignorar quando elas representam as duas forças titânicas cujos atos e influência movimentam a trama até mesmo quando não estão em cena. Para dizer se a vitória foi de fato merecida, seria necessário assistir antes a “Mrs. Miniver”, que venceu nessas duas categorias, para poder dar um julgamento apropriado. Fica apenas marcada na história mais uma ocasião em que Bette Davis poderia — e merecia — ter ganhado seu terceiro Oscar, o que nunca aconteceu nem mesmo com outras quatro indicações após esta.