“Ford v Ferrari” não parecia grande coisa, realmente. Uma história de rivalidade e corrida já não é a maior novidade, ter um título como este e dois grandes nomes envolvidos também não ajudaram por conta da campanha publicitária estranha. Os trailers, então, chegam a ser enganadores na forma como tratam o assunto, dando a entender uma coisa que nunca acontece na obra final. Até mesmo a Disney demonstrou preocupação sobre este ser mais um fracasso de bilheteria vindo da 20th Century Fox, sua recente aquisição. Quem diria que a verdade estaria tão próxima de “Rush“, outro filme envolvendo rivalidade no mundo das quatro rodas, outro sucesso inesperado sobre um tema de que não sou o maior fã.
Em meados da década de 60, a Ford passa por uma crise interna envolvendo o direcionamento da empresa. Henry Ford II (Tracy Letts) decide que é tempo de novidades e passa sua atenção para o mundo das corridas dominado pela Ferrari. Sua idéia é oferecer uma proposta para a empresa italiana em dificuldades financeiras, comprá-la e partilhar de seu sucesso no mundo da corrida profissional. Mas Enzo Ferrari pensa diferente e ofende a empresa americana, que encontra uma motivação renovada para construir sua própria máquina, entrar no jogo e botar a Ferrari no seu lugar. Carroll Shelby (Matt Damon) se encarrega do projeto e traz seu velho parceiro Ken Miles (Christian Bale) para trabalhar na desforra da Ford durante a Le Mans.
Antes de qualquer coisa, vale dizer que não sou o maior entusiasta por carros e o mundo automobilístico, definitivamente não acordo cedo no domingo para assistir à Fórmula 1 na TV aberta. A história de competições, reputações, vitórias, derrotas, rivalidades e marcos históricos são desconhecidas por mim, assim como a história dessa disputa entre a Ferrari e a Ford nos Anos 60. Isso não quer dizer também que sou ignorante em absolutamente tudo envolvendo carros ou que sequer gosto deles. Mesmo nunca tendo um pôster de um possante na parede do meu quarto, alguns carros são bons demais para não serem apreciados. “Ford v Ferrari” é o tipo de trabalho tão competente que lembra sua audiência de como o ronco de um motor recém-ligado pode ser um alívio de tensão instantâneo, um lembrete da experiência incrível por vir: engatar a primeira marcha e sentir a máquina fazer sua mágica.
Esse é o poder de uma narrativa forte. Sempre fui uma pessoa muito mais das motos do que dos carros, prefiro uma Harley-Davidson à uma Mercedes-Benz sempre e nem por isso acho filmes ou séries envolvendo motocicletas mais excitantes. “Ford v Ferrari” consegue despertar alguma coisa a mais, talvez um sentimento de catarse por encontrar indivíduos que vivem pelo cheiro de gasolina de alta octanagem e não pensam em outra coisa além de seu trabalho, sejam elas mecânicos, pilotos, engenheiros ou designers. Esta é uma história de pessoas partilhando uma paixão para além do entusiasmo cru de exaltar as máquinas constantemente, elas trabalham com aquilo pelo prazer de dirigir um carro e se sentem realizados de fazer parte da criação de algo novo.
Muitos personagens são pequenas figuras recorrentes, sempre visíveis num pit stop ou dentro da mecânica mexendo em alguma coisa, apenas reconhecíveis por quem conhece a história muito a fundo. Assim como qualquer outra história com coadjuvantes, “Ford v Ferrari” traz um número considerável de pessoas adjuntas aos papéis principais. Não se trata apenas de Christian Bale e Matt Damon, longe disso. A construção narrativa aproveita cada uma dessas pequenas figuras para estabelecer o tipo de ambiente em que se trabalha e, mais do que isso, um grupo unido pelo mesmo propósito de construir os carros, consertá-los quando necessário, melhorá-los sempre que possível e dirigir quando disponível. O mundo, porém, não é feito só de amantes, pois há sempre aqueles que estão próximos por conveniência e não pensam da mesma forma, pessoas para quem o esporte é uma moeda de troca como qualquer outra. As forças por trás de cada campo qualificam o antagonismo da trama e o desenvolvem como algo além do clássico protagonista com um vilão agindo contra seus interesses. O melhor é que isso não tem nada a ver com o tema principal envolvendo as duas fabricantes de carros. Há uma complexidade narrativa inesperada numa suposta história de rivais.
A melhor parte é que os dois lados possuem elementos fortes elevando o conflito para um patamar de envolvimento emocional direto do espectador. Como pode “Ford v Ferrari” relembrar o espectador de sua paixão por carros — mesmo que momentaneamente — e depois ousar apresentar heresias? Ao se deparar com isso, é praticamente instantâneo sentir um envolvimento emocional mais intenso, levando o antagonismo para o lado pessoal. A narrativa sabe exatamente como levar o espectador para a posição de alguém que se importa, não apenas alguém assistindo passivamente a uma disputa entre empresas gigantes numa corrida de 24 horas de duração.
Aliás, eis uma oportunidade perfeita de arrastar a narrativa no lodo: um clímax envolvendo um evento longo e repetitivo. Poderia dar muito errado e acabar com o ritmo da obra justamente quando é mais importante que a trama se intensifique e aumente a magnitude do conflito. Nada disso combina com uma corrida de resistência, passar 24 horas repetindo voltas com pequenas variações de clima, dia e noite, tempos de volta e possíveis problemas com o carro; são todos fatores que provavelmente colocam o piloto sob tensão sem passar a mesma impressão para audiência. Então as graças da Edição e Direção se fazem notar, os truques que fazem o cinema ser uma arte tão fascinante em sua manipulação de tempo e perspectiva. O clímax de “Ford v Ferrari” funciona como deve sem relembrar as possibilidades de tudo ser uma grande repetição tediosa.
Excitante é uma palavra que define “Ford v Ferrari” perfeitamente bem. Nos momentos logo após o fim da sessão não dá para evitar olhar para o retrovisor sem certo fogo nos olhos de quem busca os adversários, acelerar o carro sentindo um prazer incomum no dia-a-dia. E, claro, sem esquecer dos méritos do elenco na construção de uma história poderosa dentro e fora das pistas. Com Christian Bale dando outro espetáculo à base de um sotaque quase ininteligível, é muito provável encontrar indicações por este papel. Não só para ele, como também para outras áreas diretamente responsáveis pelo resultado incrível de um dos melhores filmes do ano até o momento.