A cada verão, Timothy Treadwell saía de sua casa para passar a temporada em um lugar chamado Santuário dos Ursos, acampando no meio da floresta com uma câmera e não muito mais do que as roupas do corpo enquanto convivia e gravava suas aventuras entre os ursos no Alaska. Foram 13 expedições no total e centenas de horas de material gravado para o que ele planejava transformar em um seriado de televisão sobre sua vida entre alguns dos animais mais ferozes do planeta. Mas não para ele. Timothy acreditava que os ursos eram mal compreendidos pela sociedade e alegava compreendê-los profundamente. Então ele e sua namorada morreram atacados pelas mesmas feras que protegiam. Com todo o material em mãos, restou a Werner Herzog contar a história da trágica aventura de Treadwell. Essa é a história de “Grizzly Man”.
Mas a grande revelação do filme já não foi revelada? Se já se sabe que o protagonista morre num ataque de urso, qual o ponto de assistir ao filme sendo que a surpresa já foi estragada? Bem, depende muito de onde o espectador mora, pois Treadwell tinha certa notoriedade na América do Norte por causa de seu ativismo, de aparições na televisão, trabalho voluntário e eventual morte noticiada pela mídia. De qualquer forma, a própria premissa de “Grizzly Man” em vários lugares menciona as mortes eu suas poucas linhas descritivas. Como o próprio Werner Herzog fala, de seu jeito poético e enigmático, essa não é tanto uma história sobre um ativista e seu trabalho revolucionário entre animais perigosos, vivendo entre eles como se fosse um tipo de Tarzan, um homem-urso como o título aponta. Até porque não há muito do que falar sobre o assunto, basta ver as filmagens e as idéias expostas pelo rapaz a respeito dos animais e da sociedade para perceber que o conteúdo real estava em outro lugar.
O que dizer sobre o ativismo? Eis um rapaz que decide começar a passar os verões no Alaska convivendo com ursos. Ele chega perto dos animais e tenta fazer parte do ambiente, ser reconhecido como um membro daquele lugar com seu próprio espaço e respeito, de certa forma, como um indivíduo capaz de se defender, sem vulnerabilidades a serem exploradas pelos animais. A proximidade dele com sua câmera por vezes é assustadora e é quase inevitável pensar que o homem só pode ser louco de estar fazendo isso. Há choque e surpresa num primeiro momento ao ver algo ousado como “Grizzly Man”, diferente das filmagens dos canais como Discovery Channel, National Geographic e Animal Planet, feitas usando lentes de grande distância focal a uma distância muito segura para os cinegrafistas. Talvez nem mesmo Steve Irwin e outros apresentadores chegaram a ser tão ousados porque Timothy Treadwell estava sozinho, sem segurança alguma.
Mas choque sempre tem prazo de validade. Dificilmente, talvez nunca, o mesmo estímulo consegue manter constante o nível de impacto conforme se repete sem variação alguma. “Grizzly Man” sabe perfeitamente bem disso e não se limita ao mesmo tipo de material. Afinal de contas, não muito pode ser dito. O próprio documentário oferece comentários de outras pessoas a respeito do indivíduo e seus atos. É quase automático estabelecer uma certa opinião sobre ele, ou seja, uma pessoa que achava estar tendo algum tipo de contato extra-sensorial, talvez místico, com aqueles animais, desenvolvendo em sua cabeça uma relação íntima com esse urso e aquele, chamando-os pelo nome e tratando-os como amigos. Não é uma questão de contestar a veracidade disso ou não, e sim de perceber que o fundamento por trás de seus atos é por vez pouco sólido. Isso e o fato de um urso mudar de idéia a respeito de sua dieta, então o assunto de fato não é o nível de sucesso ou a validade de toda a proposta.
Isso é dito logo no começo de “Grizzly Man” e logo se torna evidente quando os temas supostamente secundários vêm à tona. Talvez esse seja um exemplo de projeto que começou com uma idéia bem definida e se transformou em algo completamente diferente no meio do caminho. Treadwell certamente não planejava a própria morte. O material era para se tornar algum tipo de documentário sobre a vida dos ursos: seu comportamento, sua relação com humanos, como são vistos e supostamente injustiçados pela sociedade. O resultado, curiosamente, se tornou um documentário sobre a vida do próprio ativista; ou nas palavras de Werner Herzog, um estudo sobre a natureza humana. Há de se pensar se é realmente tão profundo assim.
No mínimo é um recorte cativante de um pedaço da natureza humana, talvez um bastante peculiar por conta dos caminhos escolhidos e do estilo de vida incomum, mesmo assim um que conserva a essência daquilo que poderia muito bem ser a realidade de outras pessoas. Na raiz de um filme sobre ursos há o retrato de um homem que escolheu aquela vida por um motivo, passou por desafios e dificuldades como tanta gente e acabou por seguir uma direção singular. Mais do que apresentar o trabalho do homem com os animais, “Grizzly Man” explora também o que levou ele a fazer isso e quais tipos de segredos alimentavam sua personalidade excêntrica e amante de ursos.
É aí que o filme brilha de fato. O conteúdo superficial não parece grande coisa e talvez o próprio Timothy Treadwell não seja mais do que um esquisito que ganhou notoriedade por suas decisões de vida relativamente insanas. Talvez se ele estivesse vivo, não seria a mesma coisa. Mas eventos trágicos aconteceram e alguma história surgiu entre eles, a história de uma pessoa que sonhava em ser muito mais, com certeza algo diferente do que veio a se tornar. A tragédia se manifesta não só através dos eventos óbvios da premissa, como a morte do protagonista, há muito mais para ser visto naquilo que era para ser um estudo etológico e se tornou um veículo para uma alma atormentada. “Grizzly Man” é simples em sua essência e bem-sucedido em sua execução de aproveitar raros ganchos de histórias aparentemente mornas.