É bem sabido que “Top Hat” é um dos filmes mais famosos da parceria Ginger Rogers e Fred Astaire. Talvez o mais. Seria o melhor também? Não. O problema — relativamente falando — de assistir filme antigos fora de época é a ordem. A carreira do cineasta ou do ator já começou faz tempo e muitas vezes já terminou também, deixando para trás listas com os melhores trabalhos e premiações dadas anos antes do espectador sequer ter tempo de assistir aos indicados e ter uma opinião se era merecido ou não. Talvez assistir antes a “Swing Time“, de dois anos mais tarde, tenha estragado a experiência, talvez não. Só se pode afirmar de fato que há um elemento para comparar e estabelecer parâmetro e, neste caso, é a obra de George Stevens que sai por cima dessa de Mark Sandrich.
A vida agitada de Jerry Travers (Fred Astaire) o leva até Londres, onde seu produtor e amigo Horace Hardwick (Edward Everett Horton) agendou uma série de apresentações de casa cheia. O palco é um espetáculo só, mas é outro lugar que chama sua atenção: o hotel. É lá que Dale Tremont (Ginger Rogers) está hospedada junto com o excêntrico estilista italiano Alberto Beddini (Erik Rhodes), que prepara vestidos especialmente para ela usar e cativar as pessoas por onde passa. Seu plano dá certo. Jerry logo se vê atraído pela moça, querendo fazer de tudo para conquistar seu amor, só não contava com a grande confusão de ela o confundir com seu produtor.
Comparar é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que a inexistência dela resultaria numa falta de parâmetro para dizer o que é bom ou ruim, pois tudo seria bom ou tudo seria ruim sem algo para ser melhor ou pior que, limitar-se a um bate-volta pode fugir à proposta de analisar os méritos individuais de uma obra. Faz sentido nesse caso porque “Top Hat” e “Swing Time” possuem a mesma proposta de musical-comédia romântica, a mesma dupla de atores e são da mesma época. Já não há o problema de pecar por ignorar o contexto com estas semelhanças em jogo. Tendo visto apenas o segundo, tive a noção de que todos os filmes de Astaire e Rogers seriam mais ou menos no mesmo nível de competência, talvez seguindo até a mesma fórmula beat por beat. Foi um tanto surpreendente ver que a realidade é diferente nos dois sentidos.
Primeiramente porque a história de “Top Hat” é muito mais interessante. Isso não é dizer que a trama de um rapaz que vai até Nova York para ganhar dinheiro e acaba se apaixonando por uma instrutora de dança no caminho é desinteressante. Ela é muito boa e sem dúvida faz parte do sucesso geral do filme. O outro lado da moeda traz algo ainda melhor na forma de uma trama inteiramente baseada num mal entendido. A moça acha que o rapaz por quem se apaixonou é outra pessoa e o julga errado uma vez após a outra em seus vários encontros. O que pode parecer bobo é, na verdade, desenvolvido para grande e repetido efeito cômico através de composições visuais inteligentes favorecendo a confusão e outras situações de cunho absurdo que fazem completo sentido dentro da troca de identidade. É como se alguém falasse algo ironicamente e mantivesse a mentira indeterminadamente até a outra pessoa desconfiar de algo. Aliás, não apenas algo, algo extraordinariamente fora da realidade como achar que uma pessoa é outra e continuar acreditando nisso por dias e dias.
Considerando os três pilares principais da obra, definidos pelos gêneros a que pertence — comédia, romance e musical —, dois deles estão em perfeita forma. “Top Hat” poderia esquecer a parte musical para focar nessas duas a fundo e ainda assim seria um bom filme. As qualidades importantes estão todas ali. Há um toque claro de surrealidade para que o envolvimento não seja tomado como algo dramático ou sentimental demais nem besta se avaliado com um filtro comum, que trataria as coisas como elas acontecem na vida real. É claro que romances não acontecem dessa forma, que pedir em casamento nos primeiros dias não é uma boa idéia e que fazer uma viagem internacional para encontrar uma pretendente é fora de cogitação, além de um pouco esquisito. O mesmo acontece com a confusão apresentada, impossível de se manter por tanto tempo e por isso uma fonte contínua de diversão a cada forma nova de perpetuar a mentira usando rotinas clássicas de comédia slapstick.
O terceiro pilar, que pode ser considerado como o mais importante para alguns, deixa um pouco a desejar. Enquanto a história de “Top Hat” se mostra mais divertida e engraçada que a de “Swing Time” por funcionar melhor como uma comédia, a parte musical da obra evidentemente fica mais atrás. E não é por falta de uma canção memorável como “The Way You Look Tonight”, pois foi aqui que nasceu um hit de inúmeros artistas ao longo dos anos, mais recentemente de Lady Gaga e Tony Bennett: “Cheek to Cheek”. Hoje em dia se pode pensar que foi apenas o diretor usando uma música famosa no meio do filme, sendo que ela foi escrita especialmente para o longa-metragem. Entretanto, nem ela é o bastante para compensar uma falta sentida no lado musical da experiência, inclusive no quesito dança.
A impressão é que faltam números musicais. Logo se percebe que o problema em questão não é a quantidade, e sim o impacto causado por eles. “Cheek to Cheek” é facilmente o melhor: combina perfeitamente os fatores dança e canção em um mesmo número, isto é, uma coreografia realizada em sintonia com o lado cantado. Outros que chamam a atenção incluem “No Strings (I’m Fancy Free)” e “Top Hat, White Tie and Tails” em um grau levemente menor. Nelas há um pouco menos de brilho. Certos trechos da dança parecem que estão ali apenas para manter o personagem fazendo algo enquanto canta e no segundo caso todo o elenco de coadjuvante está ali para fazer número e reagir limitadamente à performance de Astaire. O número principal, inclusive, que deveria ser a apresentação mais ambiciosa e chamativa da experiência é também o ponto mais pobre de um ponto de vista de direção, em que Mark Sandrich explicitamente faz uma colcha de retalhos numa tentativa de criar algo grande ao invés de coreografar algo que começa num ponto e transita pelas fases que o diretor deseja, alternando número de participantes e teor da dança ou melodia até finalmente chegar numa conclusão. O que ele faz é gravar trechos de cada uma dessas fases e colocar em sequência sem nem tentar criar certa fluidez.
É completamente diferente do que se vê nos números de “Swing Time“, no qual o clímax realmente traz algo de escopo muito maior do que qualquer coisa vista na obra. Isso mostra que ter dois jogadores de talento envolvidos não é o bastante, que não é apenas uma questão de ligar a câmera e deixar os profissionais fazerem o que sabem de melhor. Várias regras de composição visual e até algo mais simples como um faro para movimento e posicionamento de câmera entram em jogo, coisas que Mark Sandrich várias vezes mostra não ter ao se limitar a colocar Astaire no centro do quadro sapateando. É um bom sapateado, certamente, que compete contra outra versão envolvendo o ator dançando com sua própria sombra projetada no fundo. “Top Hat” acerta em muita coisa, apenas não tão alto quanto outros similares.