Um filme de super-herói ganhando o Leão de Ouro em Veneza? Mas que diabos? Se ao menos uma parcela da audiência tiver pensado como eu e achado tosca a idéia de uma história do Coringa, então a surpresa provavelmente foi grande depois dos elogios rasgados. A princípio pareceu que a linha de raciocínio começou com a atenção que Heath Ledger trouxe ao vilão no seu excelente trabalho em “The Dark Knight”, então nasceu a decisão de aproveitar todo o potencial do vilão mais e mais, chegando ao ponto de excluir o próprio Batman da equação e focar apenas no palhaço do crime. Ainda soa como uma idéia típica dos executivos que querem ganhar dinheiro até esgotar a fonte, mas algo diferente foi feito com “Joker”, algo que não é um filme de herói e muito menos uma produção fajuta levando nome famoso.
Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) está chegando na meia idade, mora com a mãe e tem um emprego que odeia. Ou melhor, isso seria colocar em palavras gentis. O rapaz tem um emprego terrível como palhaço de eventos e tendo como tarefa, por exemplo, fazer graças com uma placa na mão para chamar a atenção dos pedestres. O que ele ganha é apenas o desrespeito de todos e até uma bela surra vez ou outra. Chegando em casa, encontra apenas os lamentos eternos de sua doente mãe contando histórias e mais histórias. No limite da sanidade, Arthur logo se encontra forçado a ver comédia em sua tragédia de um jeito peculiarmente perigoso.
Talvez os mais fãs mais puristas ainda fiquem bravos com “Joker” porque ele quebra um tabus interessante: ninguém sabe ao certo a origem do Coringa. Para alguém ser temido até mesmo por indivíduos como um homem numa armadura criogênica, um nanico de nariz pontudo e um advogado com o rosto queimado, deve haver uma boa razão. Ele é completamente insano. Imprevisível em seus atos, outros criminosos sequer pensam em uma parceria por medo dos resultados. E por trás disso? Tanta loucura deve ter uma boa razão ou várias delas, uma história de vida sinistra pavimentando as linhas de raciocínio loucas de uma mente perversa. O truque é ninguém, nem mesmo o Batman, sabe quem de fato foi o Coringa no passado e, para ajudar, o palhaço acha graça em contar uma história diferente e igualmente chocante para cada pessoa.
Isso até chegou a ser explorado em “The Dark Knight” e funcionou muito bem por dar substância à personalidade do vilão, mostrando que até mesmo sua vida é uma grande piada para ele. A própria premissa de “Joker” já acaba com qualquer tipo de mistério porque nem mesmo é o personagem que conta sua própria história, o que ao menos deixaria abertura para a interpretação de que tudo aquilo é mais uma grande mentira que ele conta para desperdiçar o tempo do ouvinte. Mas isso não é um problema com uma história boa. Evita-se as armadilhas de uma obra sobre uma figura polêmica de padrões completamente fora da realidade e atitudes comparáveis ao niilismo de certos terroristas, assim como outras mais óbvias de teor narrativo. A impressão de que os erros capitais foram cometidos jamais se forma.
Por um lado, seria péssimo encontrar outro “Halloween” aqui. Nada de pecar por tentar explicar demais e dar uma razão explícita para cada comportamento e traço de personalidade como a refilmagem de Rob Zombie. “Joker” apresenta uma história já no meio do caminho, revelando as informações relevantes do passado enquanto o presente acontece, sem mostrar o protagonista jovem sofrendo traumas diretamente ligados a características atuais. O oposto também não acontece, não havendo cenas meramente expositivas explicando detalhes muito melhor transmitidos por diálogos bem escritos ou, ainda melhor, através das performances. A história encontra uma forma inteligente de transmitir os fatos relevantes da vida do personagem usando um ponto de transição de sua personalidade em que se pode ver tanto quem ele era como quem ele vem a ser.
Outro ponto interessante e amplamente polêmico é a relação entre o personagem e a sociedade em que ele se insere. Uma forma de tentar expor as facetas do personagem seria mostrar como a cultura da vida urbana interfere na formação do indivíduo ou, em outras palavras, dizer que ele é vítima da sociedade. Pode até fazer sentido, mas eis o medo de jornalistas, produtores e outros: tornar a figura do Coringa simpática de alguma forma e assim tornar seus atos justificáveis, talvez dar idéia para espectadores desequilibrados. Seria um risco se “Joker” tentasse fazer o espectador se sentir tocado pela tragédia do personagem. Sim, são mostrados vários eventos enlouquecedores, que tirariam qualquer dos eixos por serem puramente cruéis por falta de outro adjetivo mais apropriado. A idéia é mostrar que existem gatilhos sem transferir a responsabilidade das barbaridades para algo além do indivíduo.
O mesmo evento pode ter várias implicações dependendo da representação. É o mesmo com a maior parte das coisas no cinema e na vida, realmente. Uma mesma cena fotografada de outro ângulo pode mudar completamente a relação entre os personagens em quadro; uma frase dita em diferentes entonações pode soar ofensiva ou fortemente sarcástica. Tudo relacionado à sociedade em “Joker”, embora possa ser ligado à personalidade do protagonista de várias formas, não deixa de ser uma crítica ao atual estado turbulento das coisas através de uma metáfora narrativamente coerente. É freqüentemente dito nos quadrinhos que Gotham é um verdadeiro lixo, antro do crime e avatar de todos os horrores urbanos imagináveis, da pobreza extrema ao lixo nas ruas e ao descontrole social resultando em destruição e anarquia. Talvez seja a melhor representação da cidade fictícia por mostrar perfeitamente por que o Batman é necessário ali. Chega a ser enfurecedor o pensamento de viver no lugar e ter a maçã do rosto afundada aos pontapés quase gratuitamente para depois chegar no corredor do prédio e ser recebido pelos ratos. A ambientação e a crítica social andam lado a lado, não há um preenchimento gratuito de agenda aqui.
Acima de tudo, “Joker” é um estudo de personagem. Não há muito enredo a ser encontrado, vide as várias premissas de uma linha promovendo o filme por aí. Pouco é necessário para contextualizar o espectador e a trama reflete isso ao se estruturar como uma derrocada em direção à insanidade, a representação viva de um homem já no limite, beirando ultrapassá-lo a qualquer momento. E como em outros casos, o sucesso é quase inteiramente dependente da performance do ator principal para que a audiência compreenda seu personagem e sustente seu interesse por meio das nuances do seu desenvolvimento interno. Joaquin Phoenix se mostra à altura dos melhores atores que interpretaram o Coringa e, sem entrar em méritos de ranquear, traz uma interpretação que pode ser imediatamente tida como sua, uma leitura respeitosa ao arquétipo do personagem abraçando as contribuições idiossincráticas do ator.
Ser diferente nada tem a ver com qualidade. Caso funcionasse assim, a versão de Jared Leto não seria tão criticada porque, bem, tentar ser diferente é o que mais se vê em sua caracterização patética. Phoenix faz mais do que isso quando evoca uma atmosfera de psicose alimentada por raiva e frustração imensuráveis, sentimentos que poderiam fazer alguém sair fuzilando pessoas em um lugar público, porém encontram outro tipo de escape. Primeiramente, intensificam-se em um limbo que exala repressão para quem vê de fora e em seguida são expelidos do jeito característico do Coringa. Talvez o único detalhe negativo sobre a interpretação seja a risada em alguns momentos estranhos, nos quais ela parece acontecer porque sim, quase como se houvesse uma falta de outros comportamentos no repertório e ator apenas risse por rir. Sobre a obra como um todo, o ritmo peca um pouco por ser lento demais e acelerar menos freqüentemente do que soa necessário. Em última nota, “Joker” merece certo mérito por trazer Robert De Niro em um papel digno de nota entre tantos outros esquecíveis dos últimos anos, além de fazer uma referência bacana a seu ótimo papel em “The King of Comedy“.
1 comment
Vou processar esse filme por plágio, se basearam na minha vida.