O Faroeste foi um dos gêneros mais fortes do cinema americano e então morreu aos poucos. A razão para isso é simples e se limita a uma palavra: saturação. Chegou um ponto em que o caubói misterioso vindo de um lugar desconhecido, possuindo as mãos mais rápidas de todo o Oeste e resolvendo o conflito inteiro num duelo dramático, já não tinha mais graça. Praticamente se tornou uma convenção cortar o tiroteio no momento crítico para sugerir quão rápido o herói realmente é sem chegar a mostrar. Enfim chegou a hora de mudanças, várias bem-vindas, mas que por si já significavam certa decadência do gênero por trazerem algo que as audiências não necessariamente procuravam. Vários subgêneros surgiram, enquanto alguns poucos exemplos se mantiveram mais ou menos fiéis às raízes. “Dances with Wolves” é um deles.
Depois de um desesperado ato de heroísmo durante uma batalha, o Tenente John J. Dunbar (Kevin Costner) ganha o respeito de seus superiores e algumas regalias. Entre elas, ser transferido para qualquer posto do exército ao seu critério pessoal. Em vez de continuar a batalha junto de sua nação, Dunbar escolhe a instalação mais afastada do front e da civilização. Não por covardia, ele quer conhecer a Fronteira antes que ela desapareça, lugar em que o tal progresso ainda não chegou. Um tipo diferente de civilização logo se apresenta na forma dos índios Sioux, com quem o tenente passa a ficar mais e mais próximo conforme conhece seus valores.
Por mais que seja um dos exemplos mais normais dentre os vários subgêneros do Faroeste, os quais incluem a presença de monstros de filmes de terror, bandas de rock na trilha sonora, elementos de ficção científica e até pornografia, “Dances with Wolves” também não pode ser chamado de um faroeste clássico. Vários dos aspectos desta classificação falham em se apresentar aqui. Não é uma história de acerto de contas, grandes roubos ou atritos com bandidos, é justamente o oposto e algo próximo ao que foi chamado de Faroeste Revisionista ao longo dos Anos 60 e 70. Os índios não são mais descerebrados, sanguinários e selvagens como foram várias vezes mostrados antes, passam a ser personagens tão dignos de humanidade quanto qualquer homem branco, talvez até mais.
O grande triunfo de um filme como esse, o que o diferencia de todos os outros com a mesma proposta de inverter papéis e ressignificar elementos comuns, desconstruir convenções, é o nível de profundidade das raízes na história. “Little Big Man“, por exemplo, já havia explorado a idéia de um homem branco convivendo entre indígenas 20 anos antes. Sem o mesmo sucesso, vale dizer, até porque as histórias como um todo divergem principalmente pela mais antiga ter um escopo que não se prende tanto ao lado indígena, mesmo sendo o melhor que tem a oferecer. Sem dizer o que é mais certo ou menos, resta fazer uma avaliação de acordo com o que é apresentado. “Dances with Wolves” vai longe a ponto de uma parte considerável do diálogo ser falado em Lakota, idioma dos nativo-americanos da região.
O que poderia ser encarado como um detalhe meramente curioso de produção é um símbolo do compromisso do roteiro em centrar sua história na imersão em uma cultura diferente, pouco reconhecível a despeito de suas origens ocidentais. Os personagens poderiam estar falando sueco ou esloveno, pois nenhuma palavra ou fonema sequer são reconhecíveis. Há a certeza de que não é uma característica arbitrária porque a própria linguagem se mostra um obstáculo para o protagonista num primeiro momento. Nada de inglês com sotaque, há algo mais no âmbito da comunicação. “Dances with Wolves” faz disso uma forma de conquistar o espectador, fazê-lo não encarar tudo como uma ficção estruturada nos conformes populares e abraçar os pequenos momentos como oportunidades de conhecer uma realidade diferente.
Trata-se de uma forma de atingir o objetivo básico de qualquer história, cinematográfica ou não, de criar um elo empático entre audiência e as situações ou personagens apresentados. Claro, isto não é um mérito exclusivo de “Dances with Wolves” porque a própria percepção de qualidade em um filme é prova de que este elo existe. A diferença reside no fato de que o enredo é um tanto solto, de certa forma, por largar um homem no meio do nada e acompanhar seu dia-a-dia redescobrindo os significados do tédio ocultados sob a sombra do dever para depois mostrar novamente seu dia-a-dia em outros contextos. Sendo o trajeto do protagonista comparável a uma viagem, o que mais é esta última coisa além de uma grande experiência? É entender o que John J. Dunbar entende e descobrir o que ele descobre junto com ele, compartilhando os sentimentos nascidos ao longo do caminho. São poucos os problemas. Por vezes é mesmo um pouco distrativo ouvir a narração travada de Kevin Costner conforme ele lê trechos do próprio diário, algo que peca na execução por não haver nenhuma incoerência na idéia dentro da narrativa. Novamente, é apenas um detalhe entre tantos outros muito mais positivos. E só, pouco mais do que isso além de poucos momentos de cansaço.
E o que se extrai da experiência? Sentido é importante a fim de que todos os elementos não sejam um arranjo por mero capricho. Costuma-se pensar e associar que muitos dos costumes dos índios estão ligados a uma forma mais primitiva da existência, ligada à natureza selvagem. Existem vestes usando partes de animais e às vezes imitando suas aparências, ritos e cânticos que lembram facilmente o rugido de um predador ou o uivo de outro animal que anuncia sua presença ao mundo. Tudo remete à simplicidade da vida natural distante da racionalidade vista na sociedade moderna. Mas até que ponto isso é verdade? “Dances with Wolves” inverte essa noção sem se limitar a julgamentos de valor para que um lado seja denominado como simpático e outro como antagônico. Há uma real reflexão sobre o papel de cada lado no mundo e como cada ponto de vista se relaciona com e constrói o ambiente em que se estabelecem; algo até simples e pouco surpreendente por ser uma linha de raciocínio natural, dado o contexto, que é bem representada principalmente por usar elementos visuais a seu favor.
Como se não fosse o bastante, o filme acerta em um nível simples por trazer elementos audiovisuais dando sentido ao termo literalmente. Uma parcela da conquista visual se dá por conta da escolhas de imagens como ferramentas narrativas por parte da direção de Kevin Costner. Ora se vê uma simplicidade também percebida em “Unforgiven“, paisagens imaculadas e dominadas pela extensão aparentemente infinita da natureza; em outros momentos, cenas desagradáveis e independentes de valor de choque gratuito, escolhas estratégicas na construção de um argumento. Além de tudo isso, beleza em abundância na cinematografia e uma trilha sonora perfeitamente adequada de John Barry, famoso pelo seu trabalho com James Bond, garantem prazer também nas partes mais sensoriais de “Dances with Wolves”. De resto, fica apenas a curiosidade por como é a obra em sua concepção original e receptora de todos os prêmios, já que a versão assistida foi o corte do diretor com 55 minutos a mais que os 181 minutos originais. Será que o ritmo se beneficia ou a narrativa sofre?