É claro que “Lolita” seria um filme polêmico. Ainda é, pois as leis a respeito de interesse sexual em garotas menores de idade não mudaram e, bem, nutrir desejo sexual por uma garota de 14 anos ainda é altamente controverso. No mínimo, significa que este não é apenas outro caso de obra polêmica só para os padrões de seu tempo, perdendo parte de seu impacto com o passar dos anos. A idéia de Vladimir Nabokov, autor do livro original e do roteiro desta adaptação, era e ainda é uma demonstração de ousadia por tocar onde a maioria esmagadora prefere nem passar perto.
Depois de ganhar certo sucesso e reconhecimento nos Estados Unidos com suas traduções de poesia francesa, o Professor Humbert (James Mason) decide se mudar para o país e começar a lecionar numa universidade. Seu plano é achar um lugar para passar o verão antes das aulas começarem, algo que ele encontra num quarto da casa de Charlotte Haze (Shelley Winters). Ela se mostra atenciosa, acolhedora e até demonstra estar um tanto enfatuada pelo professor, além de fazer ótimas tortas de cereja. O que faz ele ficar ali e não em outro lugar, na verdade, é outra coisa: Lolita (Sue Lyon), a magneticamente atraente filha de Charlotte.
Sendo tratado como clássico de respeito, dificilmente se poderia esperar que o tratamento do assunto principal seria apenas uma exploração descarada de uma depravação sexual que pode apetecer a alguns poucos e atiçar a curiosidade de outros. Caso fosse uma questão de tocar no assunto polêmico pelo simples prazer de fazê-lo, o resultado seria tão pobre quantos os mais desimaginativos filmes de terror que buscam chamar a atenção com a violência mais profana possível. “Lolita” é bem mais do que isso. Talvez ainda se exalte inicialmente por tratar de um homem de meia idade se envolvendo com uma garota de 14 anos, ao passo que ramificações ocultas inicialmente dão à obra a riqueza semântica que a elevam acima de um flerte com a profanidade sexual.
A primeira pergunta a se fazer, tendo um assunto como este em mente, é como tudo começa. Tratando de um veículo mais extenso e completo que uma matéria de jornal, a qual apenas noticiaria a existência do casal incomum sem mais, o cinema permite que o espectador descubra como exatamente algo assim acontece. Sem pressa, a história toma a decisão felicíssima de não se atropelar e partir para a parte principal da experiência de uma vez, esquecendo de todo o resto. “Lolita” tem 153 minutos e nenhuma pressa, aproveitando esses minutos para criar um começo que chega a fazer o espectador se engajar no presente e até esquecer um pouco o elemento-chave de todo o enredo. É preciso saber que tipo de homem é o Professor Humbert, afinal esta é uma história tanto dele quanto de sua jovem amante.
James Mason é a escolha perfeita para o protagonista. Um francês especialista em literatura européia e um jeito que não se mistura facilmente com a banalidade suburbana de uma dona de casa que só sabe falar das mesmas coisas sempre. Humbert se interessa por outros assuntos e nunca esconde isso de ninguém. O sotaque carregado de finesse de Mason o destaca a fim de traçar no chão linhas separando os pedestres dos singulares. Dessa vez o ator não se deixa destacar negativamente, como acontece com sua leitura muito flamboyant de um astro americano em “A Star is Born“. “Lolita”, por sua vez, traz a oportunidade perfeita para o ator abraçar essas qualidades e justamente se distinguir do resto, talvez até criar uma imagem polida para sua pretendente como uma pessoa culta e respeitada que ao menos fala bonito.
Isso é apenas a superfície. “Lolita” demonstra ser muito mais que seu assunto principal ao já ter bons momentos desde os créditos. Com isso, é possível entender como algo absurdo vem a acontecer e, curiosamente, a explicação é menos complicada do que se espera. Está tudo no semblante de Sue Lyon, basta olhar para ela pela primeira vez e entender por que existe a atração incontrolável. Poderia ser porque a atriz é inegavelmente atraente e de apelo sexual visível, uma beleza de parar o trânsito de qualquer lugar, mas é diferente. Por mais que, sim, os atributos da atriz não sejam exatamente ocultados, acontece um pouco como com Lee Remick em “Anatomy of a Murder“: basta um olhar para ver o que simplesmente está lá. A maior parte deste charme que passa através da tela é como um feromônio infestando o ambiente e modificando os pensamentos sem se fazer notar. A outra parte depende muito do contexto e da execução, das cenas descritas pelo roteiro e como Stanley Kubrick posiciona a câmera para transmitir suas idéias, entre eles a magia circundando a garota.
É neste ponto que “Lolita” brilha. Não li o livro para poder apontar como e onde a adaptação diverge e se ela é melhor ou pior por isso. O que posso dizer a respeito disso e da censura, ainda relativamente forte em 1962, é que a direção brilha justamente quando tem de se resguardar e trabalhar com a sugestão ao invés de mostrar os fatos acontecendo. O próprio Kubrick disse que não teria feito o filme se soubesse previamente das limitações da censura. Um exagero, considerando o ótimo trabalho feito, que evita a sensação de que falta informação ou de que a obra está muito contida. Usando principalmente diálogo sugestivo e a mesma mise-en-scène responsável pela cena do bambolê carregada de significado, por exemplo, mal se sente falta de imagens mais explícitas. O trabalho já é feito bem o bastante na transferência do espectador para o lugar de um homem obcecado por sua ninfeta, como ele chama.
“Lolita” não busca ser um retrato psicológico complexo e vívido de uma perversão sexual, explorando aos mínimos detalhes o que passa na cabeça de um homem maduro com tais gostos. James Mason, não obstante, traz um insight sentimentalmente rico de um indivíduo naquela circunstância, obsessão tendendo para a raiva e reversível em poucos segundos quando se torna culpa e até medo. É uma bela amostra de como a essência de um relacionamento como esse é conflituosa e distorcida naturalmente. As conseqüências de tudo são vistas de fato na garota. “Lolita” é menos uma história de amor obsessivo e mais sobe a corrupção de uma juventude sem chance de aproveitar a inocência como ela é; ao invés disso, a usa como apenas outra ferramenta no repertório de sedução e manipulação mundana. Uma garota vítima de sua própria natureza antes mesmo de poder escolher o que fazer da vida. Para uma obra tão polêmica, é curioso que as maiores riquezas estejam no lado sentimental de toda a profanidade.