Até hoje me lembro dos meus colegas comentando sobre “Million Dollar Baby” na época, em meados de 2005. Eu estava na quinta série e o pessoal não era exatamente o que se pode chamar de entusiastas ou entendedores de cinema, mas os comentários eram sempre bastante empolgados e até um tanto reveladores demais, tanto que até hoje, 14 anos depois, lembrava de alguns pontos do enredo. Demorei muito para ver o filme depois dessa época e finalmente creio que possa compartilhar um pouco da euforia dos meus antigos colegas.
Frankie Dunn (Clint Eastwood) consegue vitória atrás de vitória como treinador de Big Willie, que tem uma boa chance para o título de campeão. Mas quando o treinador decide esperar, o lutador o abandona e segue com outro agente para conquistar o que quer. Arrasado, Frankie se vê sozinho até que Maggie Fitzgerald (Hillary Swank) chega em seu ginásio com alguns sonhos em mente. Ele é resistente e encontra mil problemas até eventualmente começar a trabalhar com a moça a transformá-la numa campeã e, mais do que isso, em alguém mais do que o produto de sua criação infeliz.
Eis uma história mais atraente pelas suas ramificações do que pelo conteúdo principal, a trama central que serve de base para todo o resto e dá ao espectador a idéia mais concreta do que esperar. Normalmente se descreve “Million Dollar Baby” como um Rocky de protagonista mulher, o que já dá uma boa idéia do que a história se trata. Mesmo assim, vale lembrar que toda e qualquer história de boxe costuma sofrer essa comparação, vide “Raging Bull” ser “Rocky” dramático, “Creed” ser “Rocky” moderno, “Real Steel” ser “Rocky” com robôs, “Southpaw” ser “Rocky” genérico e assim por diante. Este não é exatamente um filme que segue exatamente nestes passos e evidentemente ultrapassa o cenário clássico da trama de boxe para algo mais que vem a ocupar pelo menos um terço da duração total. Aliás, se for para computar exatamente quanto tempo é usado para as lutas, chegar-se-á em um número pequeno e compatível com a postura da direção de Clint Eastwood de não as deixar serem foco de resoluções narrativas.
Comparativamente, Rocky é construído de forma que a audiência comece a história questionando quem é aquele personagem, por que ele parou de lutar e eventualmente passar a ansiar para vê-lo de volta ao jogo em uma grande luta. E então vem o clímax no momento mais certo com o protagonista lutando pelo título mundial de peso-pesado, levando o espectador a quase torcer como se numa partida ao vivo. “Million Dollar Baby” está longe dessa estrutura e deixa isso perfeitamente claro. As lutas, embora não possam ser caracterizadas como pobres de execução, são curtas e funcionam como partes menores de uma grande história envolvendo a relação entre um homem engessado em seus velhos hábitos e uma garota caipira com alguns sonhos. As lutas são degraus, mais perto da banalidade do que do destaque.
Isso não quer dizer que o esqueleto da obra seja fraco de alguma forma. A premissa de “Million Dollar Baby” não deixa de ser sobre uma garota com sonho de se tornar alguém na vida através do boxe. Independentemente do fato de soar familiar, não é algo de que eu reclamaria, já que até mesmo as similaridades com a tal obra de Sylvester Stallone constituem pontos interessantes. Hillary Swank interpreta uma personagem ordinária, aquela pessoa que não chama atenção por sua beleza e sequer parece ter algo que poderia interessar a alguém de fora, logo seus dias se resumem a passar despercebida pelos lugares. Não só isso, mas sua personagem tem mais de 30 anos quando se apresenta inicialmente para começar a treinar. As chances estão contra ela, obstáculos reais e palpáveis vistos na realidade de tanta gente que desiste de sonhos por causa de idade, dinheiro, tempo e outros fatores. Não se trata do clássico obstáculo de cinema, mas de uma caracterização efetiva para o fim de tornar o conflito real.
Tudo isso tem seu valor, enquanto as cenas que realmente deixaram lembranças para a posteridade são todas provenientes dos arcos secundários e dos detalhes que podem se perder na hora de recontar a trama do filme. É fácil esquecer do personagem de Morgan Freeman justamente por conta do papel interpretado: um zelador e ex-lutador esquecido pelo tempo para limpar o piso para a nova geração. Ele está sempre ali, quase uma parte do cenário. Ao mesmo tempo, é sua voz que novamente traz uma camada enriquecedora na forma da narração e não é só isso, sua participação vai mais além do que uma repetição do que já foi visto em “The Shawshank Redemption“, por exemplo. Algumas das melhores cenas de “Million Dollar Baby” são significativas porque a subtrama dele, embora pequena, ostenta força baseada na construção sólida do personagem. Ele faz pouco e faz bem, usa sua voz para preencher alguns espaços e contribui para a experiência mais do que qualquer outro personagem.
Novamente, o resto não é fraco. É como se a presença do treinador carrancudo, um tipo de personagem comum para Clint Eastwood, e a história da garota que quer sair do nada para ser alguém fossem partes essenciais numa seqüência de golpes, mas não aqueles que levam o oponente ao chão. De incômodo se pode apenas apontar a fotografia de “Million Dollar Baby” por ter uma identidade limitada e sem desenvolvimento. Sim, a cinematografia e a iluminação de um filme muitas vezes contam histórias por si e participam das curvas dramáticas do roteiro tanto quanto um ator percebe as demandas de uma cena e tenta resgatar os sentimentos necessários para fazê-la funcionar.
Muitas vezes isso é um trabalho invisível, que passa despercebido justamente quando cumpre seu papel de estar em consonância com as demandas da cena. Haver uma tendência é uma coisa, estabelecer um padrão rígido é outra. Parece que Tom Stern, o cinematógrafo, segue o segundo caminho ao iluminar várias, talvez a maioria, de suas cenas da mesma forma, com pouca luz delineando apenas o bastante para identificar formas no escuro e usando silhuetas em muitas outras. Nunca diria que é um resultado esteticamente desagradável, apenas criativamente restrito e de atrativos com efeito progressivamente diminuído a cada repetição.
A premissa pode ser indicativa de algo familiar e pouco empolgante por aparentemente tratar da conquista dos sonhos através do esporte, do descobrimento de valores pessoais ao longo do caminho em conjunto com as vitórias já esperadas desde o começo. “Million Dollar Baby” opera neste espaço sem se limitar a ele e pode até surpreender quando passa para uma nova etapa da trama muito antes dos minutos finais. Mas e no final das contas, é um veículo realmente merecedor dos quatro Oscar que recebeu em 2005? Talvez se possa questionar algumas decisões, considerando uma concorrência com seus próprios atrativos. Este é um bom filme, mas é de se lembrar que “Ray” e “The Aviator” estavam competindo por Melhor Filme. Só não é possível criticar a estatueta para Morgan Freeman, esta realmente foi certeira.