A única lembrança que tenho de “How to Steal a Million” é de vê-lo no catálogo do Netflix nos bons tempos em que era fácil acessar ao catálogo americano da plataforma. E foi só isso, um interesse casual que acabou não rendendo frutos porque logo perdi acesso e não voltei a procurar o filme até pouco tempo atrás, quando renovei meu interesse pelo trabalho de Audrey Hepburn quando ganhei de presente um livro reunindo as fotografias de Bob Willoughby ao longo de duas décadas de carreira da atriz. A princípio, todo esse tempo sem buscar esse filme teve explicação por conta de ele parecer apenas uma comédia romântica boba e pouco comentada, mas a realidade se mostrou muito mais charmosa, divertida e convidativa.
Nicole Bonnet (Audrey Hepburn) é filha de Charles Bonnet (Hugh Griffith), famosa figura nos círculos de colecionadores de arte da França. Várias vezes ele cedeu alguma peça de sua coleção pessoal para enriquecer o catálogo de leilões e permitir que outras pessoas tenham o prazer de ter uma obra prima em suas coleções como ele teve. Só há um detalhe: ele forja todas as obras e vende como se fossem de artistas famosos. Depois de muito relutar, ele finalmente cede uma de suas peças mais cobiçadas para ser exposta num museu, a Venus de Cellini, mas ele não sabia que ao fazer isso a estátua passaria por um exame técnico que certamente revelaria que é falsa. Nicole então decide fazer o impossível e recruta a ajuda de um peculiar ladrão para roubar a estátua do museu e evitar que seu pai vá para a prisão.
Pensando novamente na trama, é compreensível que não exista um interesse enorme e imediato pela obra porque ela parece bobinha por natureza, um filme comercial da época estrelando duas estrelas gozando de uma ótima fase em suas carreiras. Falando em obras-primas, Peter O’Toole havia participado de uma quatro anos antes como T.E. Lawrence em “Lawrence of Arabia“, entregando uma performance de tamanho poder que até hoje indigna por não ter sido recipiente de nada além de um prêmio de Most Promising Newcomer no Globo de Ouro. Audrey Hepburn, similarmente, continuava na onda de sucesso e popularidade que perduraria até o final dos Anos 60, quando ela passou a aceitar papéis cada vez mais esparsamente. Seja como for, os dois atores significam mais do que apenas estrelas vendendo “How to Steal a Million” com sua presença, um chamariz para o público.
“How to Steal a Million” é o que se pode chamar de um filme de roubo e também de comédia romântica. O mais apropriado é tratar como uma fusão desses dois subgêneros que empresta elementos de ambos sem se deixar cair nas convenções genéricas de um ou de outro. Aliás, é surpreendentemente como os mesmos elementos reconhecíveis funcionam tão bem quando incluídos organicamente na narrativa. A premissa, por si, não requer que os protagonistas se envolvam amorosamente, apenas trata de o conflito da garota querer roubar a estátua antes que seu pai seja descoberto como forjador e vá preso. Existe razão para tal romance, então? Poderia ser mais uma situação em que as regras não escritas de Hollywood inserem elementos na história desnecessariamente sob a suposta proposta de torná-la mais interessante ou mais comerciável. Felizmente, não é. A união destes elementos se dá de forma natural inicialmente com o roteiro de Harry Kurnitz e eventualmente com a direção de William Wyler e as performances do elenco.
Talvez a única parte estranha a respeito da obra é o penteado de Audrey Hepburn, mas que não haja mal-entendidos sobre isso, pois não é sua beleza que é questionada. A atriz sempre deveu parte de sua popularidade ao fato de servir como modelo para figurinos e trajes da alta moda feitos exatamente para ela com o objetivo de chamar a atenção, sua figura sempre foi veículo de tendências da moda. O único detalhe curioso é que seu penteado e maquiagem permanecem os mesmos, intocados, em absolutamente todas as cenas. Por mais que “How to Steal a Million” não seja o melhor exemplo de fidedignidade, não deixa de ser esquisito ver a personagem em trajes de dormir e o cabelo arrumado exatamente igual à uma cena de jantar, por exemplo, sem um fio fora do lugar.
Claro, isso é um detalhe dos mais irrelevantes e de forma alguma interfere diretamente na percepção da qualidade da obra. Muito mais importante é a química entre Hepburn e O’Toole, que nasce e se constrói narrativamente através da dinâmica quase lúdica vista nos flertes e aproximações deles. Ademais, as interpretações dos dois elevam o potencial das situações criadas a algo real num nível sentimentalmente satisfatório, carinho e atração lutando por espaço entre as brechas dos problemas de uma garota preocupada com seu pai e doida para se apaixonar ao mesmo tempo. É uma dualidade simples e totalmente apropriada a uma obra leve, que nunca soa pretensiosa e executa sua proposta de não se levar a sério demais em nenhum ponto, seja o romance ou o roubo.
Finalmente, a impressão mais forte deixada por “How to Steal a Million” é de familiaridade. Seja estudando a técnica por trás da escrita de roteiro ou apenas assistindo a filmes o bastante para desenvolver um senso crítico aguçado, não se demora para perceber que há algo em comum em boa parte das grandes obras do cinema: fluidez. Uma cena segue a outra sem que se perceba cada uma delas como uma unidade distinta, um pedaço de narrativa desconectado do próximo. E nem se trata tanto do trabalho da Edição em tornar os cortes invisíveis, mas de estruturar a narrativa no papel e construí-la visualmente na seqüência para que tudo pareça lógico e essencial para a existência de uma corrente de eventos compreensivelmente dinâmica. A familiaridade mencionada anteriormente se refere ao ideal freqüentemente almejado pelos artistas de criar uma experiência que seja agradável de experimentar mesmo quando o conteúdo é desagradável; a palavra vem a ser aplicada não como juízo de valor sobre o conteúdo, mas como uma qualificação da forma como ele é transmitido.
A própria dinâmica envolvendo o roubo principal da obra é um exemplo perfeito disso. Começa como uma idéia sem o mínimo firmamento na realidade, passa a ser um plano quase impossível quando Peter O’Toole afirma isso e fica mais concreto a cada visita da dupla de protagonista ao museu que abriga a estátua. Até mesmo a execução do plano reflete a lógica de um grande plano dividido em várias pequenas partes, um grande problema em pequenos conflitos resolvidos um a um pelos personagens até chegar no objetivo. “How to Steal a Million” entrega uma apresentação compreensível e engajante de um roubo simples tratado com o mesmo cuidado que um outro mais complexo, abrindo espaço nesse meio para trabalhar também o jovial romance entre os protagonistas. Se há uma característica definitiva para este filme é o deleite convidativo de sua narrativa que mal faz o tempo ser sentido.