O Mestre do Suspense retorna… para fazer uma comédia? Na seqüência de “To Catch a Thief“, o diretor muda a rotina e parte para algo um tanto diferente dos típicos trabalhos que fizeram sua fama nos anos anteriores com “The Trouble with Harry”. Risadas e palhaçadas no lugar de lógica e tensão, mas ainda assim uma história de assassinato no centro de tudo. Hitchcock não passa tão longe assim da sua zona de conforto em termos de conteúdo, apenas muda a abordagem de elementos já conhecidos para se adequar às novas regras de um novo gênero. Os resultados são mistos: um material-base com potencial e execução sem muita consistência.
O Capitão Wiles (Edmund Gwenn) decide quebrar um pouco as regras para se divertir certa tarde. É proibido caçar na região, mas ele decide tirar o rifle do armário para caçar coelhos nas redondezas da cidade. Alguns tiros e ele decide ver se acertou algo quando encontra um cadáver estirado no meio da grama e acha que matou o infeliz por acidente. Outras pessoas coincidentemente esbarram na cena do crime, mas ninguém consegue decidir ao certo o que fazer com o corpo até que a indecisão cria uma confusão infinitamente maior do que deveria ser.
Algumas coisas são necessárias para uma comédia e mais importante é ter graça, naturalmente. Óbvio e simples como parece, conquistar isso é outra história completamente diferente e muito mais complicada, principalmente porque não existem regras bem definidas a respeito de como fazer comédia. Definitivamente não é apenas seguir um manual de instruções porque depende muito de quem coloca faz tudo acontecer, se a pessoa tem o que costuma ser chamado de persona cômica, que consegue deixar engraçada até mesmo a mais banal e sem graça das histórias. “The Trouble with Harry” é um bom exemplo de como as coisas podem dar errado em vários sentidos quando deveriam funcionar em teoria.
Não posso falar do livro que inspirou “The Trouble with Harry” e de sua competência. A única coisa de que se pode falar com segurança sem envolver obra original é a parte visual do filme, que obviamente não existe nas páginas do livro. Os cenários marcantes levam a novo patamar o modelo de cidadezinha de interior praguejada por um mistério. É diferente do que se imagina normalmente — de Twin Peaks, por exemplo. Ainda é o interior dos Estados Unidos num lugar que aparentemente parou no tempo em vários sentidos, Vermont, porém com o diferencial da fotografia exaltar as paisagens recobertas de folhas como um ponto impossível de ignorar. Por mais que seja familiar, é um diferencial encontrar cores saturadas e a incomum presença de amarelo no cenário quando o verde costuma ser dominante em cenários de floresta e de interior. Visualmente, é um dos filmes de Hitchcock de estética mais diferenciada. A presença de outros defeitos não diminui o sucesso nesta área.
Outro ponto digno de nota é a história em geral. Fica claro que ao menos existe margem para um lado cômico no design básico das situações, como um corpo ser encontrado e a decisão peculiar de fazer qualquer coisa menos ir até a polícia e deixar a investigação e a burocracia para eles. Como os personagens preferem seguir outro caminho, tudo se complica e logo perdem qualquer tipo de sensatez que tiveram em um primeiro momento. Teoricamente, é o que faz qualquer história funcionar, até mesmo a comédia: complicar a situação gradualmente para a intensidade aumentar, seja tornando o tom cada vez mais dramático e doloroso ou bizarro e engraçado. “The Trouble with Harry” traz essa progressão e momentos cada vez mais bizarros conforme a trama progride, inclusive alguns dos melhores da obra mais perto dos momentos finais.
O problema é que falta aquele toque especial. É o que os grandes nomes da comédia têm, o dom de conseguir flexionar as palavras e colocar acentos nos lugares certos de uma frase para fazê-la ser mais que algo comum e tenha graça, uma veia cômica. Uma piada recorrente de “The Trouble with Harry” é o número de pessoas que encontram o corpo a despeito de estar fora da cidade em um lugar claramente sem razão para ser freqüentado. Então um homem passa pelo lugar, caminhando enquanto lê um livro concentrado sem nem reparar em seus arredores. O que acontece? Ele tropeça no cadáver. Que óbvio, que original. Só faltou substituir o cadáver por uma casca de banana, então se poderia chamar de um desastre preguiçoso por completo ao invés de só uma cena pouco inspirada e sem graça alguma. Vários são os momentos assim, com muitos deles tendo um quê de humor espertinho sem que isso seja uma marca do filme como um todo, assim como o jogo de palavras consegue ser característica de “The Apartment” ou o diálogo veloz e atropelado em “His Girl Friday“.
Havia potencial para algo mais aqui, sem dúvida. É possível enxergar as oportunidades e como certas cenas poderiam ter funcionado melhor, a execução se mostrando pouco afinada para o humor assim como um instrumento musical sem condições de tocar adequadamente as notas que o músico deseja. Não só isso, pois “The Trouble with Harry” ainda tem problemas de ritmo e de roteiro. Por vezes parece perdurar muito tempo em uma coisa só ou passa muito rápido por outros assuntos, alongando aquilo que poderia ser tratado sem cerimônia e atropelando cenas em que a lógica deveria ser priorizada, como os momentos finais e a simplificadíssima conclusão. Alfred Hitchcock pode ser muitas coisas, mas ele com certeza não é o Mestre da Comédia.