A “Guerra Fria” divide o mundo. O lado de cá deixa de ter qualquer coisa a ver com o lado de lá, tudo que vem do outro lado passa a ser visto com hostilidade e nada é mais como antes. Na Polônia sob o controle soviético, um grupo de camponeses se organiza para montar um coletivo artístico de cultura folclórica. Organizado por Wiktor (Tomasz Kot), o grupo se apresenta pelo país compartilhando um pouco da identidade aldeã da Polônia, mas entre todos os talentos ali é uma que chama a atenção: Zula (Joanna Kulig). Wiktor logo se apaixona por ela e os dois engatam num relacionamento intenso e criativamente ativo, ameaçado pelas duras condições políticas da época.
O primeiro quadro de “Guerra Fria” não esconde aquilo que realmente parece ser: uma produção estrangeira. Em muitos sentidos, é como a definição do senso comum: preto e branco, formato de filmagem antigo — o clássico Academy Ratio, 1.37:1 — ritmo um pouco desacelerado e de pouca a nenhuma preocupação com aquilo que movimenta Hollywood. Não há dúvida de que alguém em algum momento olhou para esta obra e pensou: “Lá vem mais um filme arte estrangeiro em preto e branco”. Especialmente com outro indicado se encaixando nessa descrição — “Roma” — fica ainda mais fácil fortalecer o estereótipo do senso comum. Mas nada disso importa quando se fala em competência propriamente dita, até porque não há nada errado com seguir tendências estéticas, Hollywood faz isso o tempo todo.
Mas não é do filme de Alfonso Cuarón que se lembra num primeiro momento. A telinha quadrada e amplos campos de natureza bela e intocada em preto e branco remetem principalmente às imagens bucólicas e calmas de “Morangos Silvestres“, a incrível obra de Ingmar Bergman. As duas histórias não possuem lá muitas similaridades além destes cenários de interior e da beleza de como são fotografados; são totalmente diferentes, na verdade. Não obstante, aproximar-se de alguma forma já é um mérito, de certa forma, especialmente porque a fotografia do longa de Bergman é tão boa. Mais apropriado, todavia, é comparar “Guerra Fria” com o filme que concorre com ele na categoria de Melhor Cinematografia, “Roma“. Ter sua cota de defeitos e não ser a congregação de maravilhas freqüentemente apontada pela crítica de nada afeta a competência da fotografia realizada pelo próprio Cuarón. É um dos grandes acertos da obra e uma constante fonte de deleite quando outros aspectos deixam a desejar.
No entanto, é “Guerra Fria” que se sobressai como a melhor cinematografia em preto e branco. Muito disso se dá pela escolha de cenários, os quais têm sua beleza ainda mais exaltada pelo jogo de iluminação de Lukasz Zal. Dos mencionados ambientes campestres e sua natural qualidade romântica às casas noturnas parisienses e seu ar denso de fumaça e suor, das ruas vazias da madrugada à intimidade de um apartamento pequeno com apenas uma cama e umas coisas largadas pelos cantos. Os ambientes têm charme e intensidade, beleza e personalidade. É mais do que apenas agradar os olhos com a estética, é honrar um momento de corações partidos com com uma atmosfera apropriada de melancolia, tudo para potencializar a já impressionante história.
O que falar dela além de sua simplicidade em tocar num assunto complexo? O amor. É ao mesmo tempo o maior dos clichês e um enigma até mesmo para os que se dispõem a resolvê-lo. São inúmeras as bandas que fizeram carreiras inteiras com canções de amor, inúmeros os poetas que lamentam e celebram o sentimento. Com tudo isso, pode-se criar a imagem de que o amor é mais que o bastante, que é o objetivo e a jornada, a resposta para todas as perguntas. Bem, continua sendo um tanto abstrato para uma definição tão abrangente. A prática sempre se mostra diferente, menos repleta de plenitude e felicidade, cheia de pormenores que fazem a pessoa se perguntar se todos os artistas mentiram todo esse tempo. Isso é “Guerra Fria”, um filme sobre o amor em sua faceta mais real.
O título pode ser interpretado diferentemente. Claro, não dá para dizer que ele é inteiramente metafórico porque a história de fato se passa durante a Guerra Fria. Ao mesmo tempo, é bem mais do que isso. O enredo foca em Wiktor e Zula e por onde o relacionamento leva eles, literalmente. Poderia ser algo simples como os dois se amarem e crescerem juntos por encontrarem no outro o aconchego do amor e a faísca da imaginação artística, mas nunca é tão fácil. Há a questão política, em primeiro lugar, dificultando significativamente a passagem pelo território europeu; além do próprio regime comunista perseguir qualquer pessoa inclinada a escapar da miséria e viver melhor no Ocidente. Eles poderiam simplesmente fugir juntos e depois ver o que acontece, mas, novamente, nunca é tão fácil.
O triunfo de “Guerra Fria” é mostrar como o andar das coisas é atropelado e errático, nunca como o planejado. Tomasz Kot e Joanna Kulig demonstram que o sentimento é real e intenso, uma força que os une de uma forma que não acontece com nenhuma outra pessoa e por isso é tão forte. Eles vão e vêm, sempre escravos de alguma força mais forte que sua racionalidade. É isso que resulta nas decisões estúpidas, nas atitudes impulsivas e em coisas que às vezes afastam os dois ao invés de os unir e fortalecer o sentimento. E com cada evento, fica no ar a sensação de algo mau resolvido, coisas de que nenhum dos dois querem falar abertamente e acabam não falando de fato. Mais ou menos como uma… guerra fria. Atos indiretos acontecem o tempo todo e a tensão domina o ambiente, enquanto o incômodo nunca é confrontado; os dois ficam na sua e a tal guerra se trava no silêncio, com nada sendo feito para resolver a situação. É como se uma força intangível influenciasse as ações dos dois sem nenhum deles perceber que poderiam fazer diferente se parassem por um momento e fossem sinceros com o outro.
Representando perfeitamente como os caminhos do coração por vezes são acidentados e dolorosos, “Guerra Fria” demonstra um sucesso invejável. As palavras ditas podem não ser aquelas mais agradáveis, as atitudes podem parecer as mais contra-intuitivas para qualquer um com o mínimo bom senso e, no entanto, é assim mesmo que as engrenagens do romance rodam. Está longe do ideal, mas a vida é assim. Nem sempre se tem exatamente o que se quer no momento desejado. Quase nunca, na verdade. A eficiência de “Guerra Fria” é demonstrar a sensibilidade para transformar apenas mais uma história de amor em algo complexo, detalhado em todas as singularidades de um fenômeno altamente incompreendido.