Roma é um bairro da Cidade do México, onde a história é ambientada. Lá se encontra a casa da Sra. Sofia (Marina de Tavira) e do Sr. Antonio (Fernando Grediaga), que vivem com seus quatro filhos pequenos. Além deles, Cleo (Yalitza Aparicio) e Adela (Nancy García Garcia) moram e trabalham na casa como empregadas da família. Um ano da vida dessas pessoas no começo da década de 70 é mostrado, com todas as dinâmicas, segredos e problemas expostos conforme cada dia traz um pouco mais da verdade sobre o que acontece. Relacionamentos complicados, laços fragmentados e outros sequer existentes escondidos sob aparências bem mantidas.
Às vezes é inevitável ficar curioso quando algo é extremamente elogiado ou criticado. As recepções mais modestas e equilibradas chamam pouca atenção para si e nem de longe fazem o mesmo barulho de um filme extremamente amado, elogiado e coroado universalmente, tratado como um dos melhores do ano e talvez até de todos os tempos. Este é o caso de “Roma”, o retorno de Alfonso Cuarón ao seu país de origem e ao drama familiar. Da imensidão silenciosa do espaço sideral ao cotidiano quieto de uma família mexicana, o cineasta retorna de uma expedição ambiciosa de centenas de milhões de dólares para explorar o mais básico da convivência familiar.
Cuarón não é apenas o diretor de “Roma”, ele também assume os postos de roteirista e diretor de fotografia, além de co-produtor e co-editor — para a alegria dos amantes da teoria do “auteur”. É incomum, no mínimo, uma pessoa ocupar tantas funções, mas talvez isso revele um pouco sobre a própria posição do diretor em relação a obra, um certo carinho ou preocupação a ponto de centralizar em si tantos cargos elementares. Sem dúvida foi um esforço homérico realizar tal feito, mesmo vindo de um diretor famoso por sempre tentar expandir os limites da forma cinematográfica com técnicas como as comentadas tomadas longas e planos-seqüência, as quais tentam unificar momentos normalmente fragmentados pelo corte em uma unidade mais imersiva, se executada corretamente. Mas é claro, as qualidades do diretor não se resumem a um tipo de tomada. Como este longa mostra, sua competência traz outros benefícios.
Todo aplauso é merecido nos casos raros do elenco não demonstrar uma falha sequer; nem uma atuação destoante, inapropriada ou mal executada chamando a atenção para si. É comum um ator, normalmente o principal, ser elogiado por não cometer deslizes ao longo de uma obra e, por vezes, ser premiado por tal feito. “Roma” consegue isso com o elenco inteiro e, ainda por cima, com atores sem outros créditos e provavelmente sem treinamento formal, como Yalitza Aparicio. Repete-se a história de “Ladri di biciclette” 70 anos mais tarde sem que o feito seja menos impressionante. Até mesmo uma cena de nudez gratuita e cômica é executada sem se perder no caminho. Há outros aspectos falhos da obra, mas a direção de elenco não é um deles.
Como é de se esperar, a parte técnica de “Roma” é impecável. A fotografia, em especial, surpreende por ser uma das poucas vezes em que Cuarón trabalha na área — a outra vez foi em conjunto com Emmanuel Lubezki em um curta-metragem — e ainda assim ser um dos pontos altos do filme. Em preto e branco se conta uma história sobre o passado. Esta é uma obra feita de pequenos momentos, como sua natureza sugere. E qual exemplo melhor da união entre beleza e significado que a introdução do personagem de Antonio, o homem da casa? Até então, só se via uma casa como qualquer outra e um cachorro com o gosto curioso de fazer cocô na garagem. Logo, as luzes dos faróis alertam a casa toda da chegada de um enorme Ford Galaxie. Milímetro por milímetro, em closes fechadíssimos, o carro manobra entre as paredes estreitas enquanto a família toda aguarda pacientemente.
A cinematografia monocromática funciona perfeitamente nesta seqüência por aliar visuais ao impacto narrativo. Há o garbo de um carro preto bem lustrado tendo seu visual e imponência valorizados pelo enquadramento e também uma platéia aguardando o fim de um episódio que seria absolutamente entediante se não fosse o anseio de encontrar a pessoa no volante. É também por isso que o próprio espectador tolera este tipo de glorificação do ato de estacionar um carro: ele quer saber qual o motivo de tanto alarde por um carro e por que a família se mobiliza dessa forma. Nesse e em outros momentos, a aquarela em tons de cinza não permite questionar a escolha estética da fotografia por conta dos visuais belos roubarem a atenção constantemente para si. Toda a produção, do figurino aos cenários, é pensada usando a paleta monocromática, assim como os melhores exemplos de fotografia em preto e branco.
Faz parte da essência da história se construir usando momentos pequenos da convivência, pois todo dia-a-dia envolve eventos repetitivos, banais e até chatos, a não ser que o caso dos personagens seja singularmente especial. E, sim, é possível usar até mesmo os menores e aparentemente irrelevantes acontecimentos para construir um conjunto maior e mais impactante. A manipulação do conteúdo modifica a percepção que se tem sobre ele; a disposição das peças confere significado e impacto a cenas que, por si, poderiam dizer de pouco a nada. Eis o grande problema de “Roma”: sua progressão dramática. Não dizendo que faltam momentos de maior importância, pois eles existem e são perceptíveis, mas todo o resto do processo está numa mesma vibração, numa mesma intensidade estável e não crescente. A progressão parece suprimida, com as pequenas lombadas ficando quase niveladas e os picos e vales reduzidos a pequenas lombadas.
Em outras palavras, “Roma” parece estar limitado por incontáveis cenas de lavar a louça, preparar o chá dos patrões e limpar o cocô de cachorro na garagem. Há muito tempo disso entre momentos críticos, momentos parados soterrando alguns poucos que não podem ser criticados de forma alguma. Talvez a obra fluiria melhor se a história tivesse um pouco mais deles ou de outros eventos instigantes para dinamizar a narrativa nestes espaços em que aparentemente nada acontece. O ritmo ser bastante lento não categoriza por si um problema se o resultado valer a pena. Tudo depende da relação entre investimento e recompensa, portanto é uma questão do destino final fazer todo o resto valer a pena. Ainda que não seja laborioso de forma alguma assistir ao cotidiano de Cleo, o final traz uma sensação de que o saldo é apenas modestamente suficiente, nada impactante.
O interessante é ver que um resultado imperfeito é acompanhado de intenções mais ambiciosas, ainda que não alcançadas. “Roma” não pode ser caracterizado como um filme limitado ou simplista. Por trás de problemas de ritmo e de progressão narrativa há a idéia de sobrepor conflitos de graus diferentes e deixá-los desenrolar ao mesmo tempo; o conflito interno, o entre duas pessoas, o familiar e até o de nível nacional. Mesmo com tudo isso em jogo, apenas um deles é desenvolvido a fundo, com os outros apenas recebendo atualizações vez ou outra como se para dizer que não foram totalmente esquecidos. Por esse e outros motivos, é difícil enxergar o que há de tão genial e incrível em “Roma” ao invés de potencialmente genial e incrível.