Um dia, ele foi um desistente de Yale e alcoólatra imprestável do Wyoming sem nenhuma perspectiva. Dificilmente se acreditaria que a mesma pessoa eventualmente se tornaria Dick Cheney (Christian Bale), um nome que a maioria dos americanos conhecem. Congressista do partido republicano, burocrata dos bastidores e eventual vice-presidente de George W. Bush (Sam Rockwell), Cheney rapidamente deixa suas origens humildes para trás a fim de se tornar uma das figuras mais importantes do futuro da política dos Estados Unidos, cuja influência pode ser sentida ainda hoje no país e no resto do mundo.
Uma das maiores críticas direcionadas a “Vice” partem diretamente das pessoas retratadas neles: o partido republicano. Claro, não é uma regra e obviamente não dita exclusividade. Outras pessoas de outros partidos e sem conexão ou afiliação política alguma podem achar o filme ruim por vários motivos e é isso que acontece mesmo. Mas como também acontece, a política tem a impressionante capacidade de causar nas pessoas o coma da racionalidade, fazendo qualquer sentimento despertado pelo assunto se inflamar com o calor de mil sóis. Então, não, muitos dos incomodados não querem saber se a obra tem algo bom, já que a visão pessoal e aparentemente fidedigna do diretor discorda deles.
Francamente, é difícil dizer o que está certo e o que está errado, o que é exagerado e o que é simplificado ou, talvez, se as representações são como a vida real. Meu contato com a política americana da época foi mínimo e limitado às maiores notícias da época, sem chegar nos detalhes e muito menos em uma figura que o próprio filme afirma ser misteriosa. De qualquer forma, há quem diga que a câmera não mente. Se uma atuação tem traços ruins, é certo que a câmera não vai deixar barato. Acredito que o mesmo acontece com desonestidade. Exageros da tal licença poética não passam pelo filtro do bom senso e logo se destacam, principalmente quando rodeados de outros momentos de natureza mais moderada. “Vice” de fato tem alguns desses alimentando a margem para as críticas pesadas. Por exemplo, é difícil defender a conclusão quando ela peca tanto na exposição descarada quanto na corrupção da personalidade de um personagem que com certeza não faria aquilo naturalmente.
Mas estes deslizes definitivamente são pontuais em “Vice”. A história em geral não transmite esse sentimento de desonestidade ou de parcialidade extrema ao pólo oposto àquele dos personagens retratados, como se fosse um veículo ridiculamente explícito da oposição. Muitos dos eventos nem poderiam ser distorcidos se essa fosse a inclinação, já que vários têm natureza objetiva e pé no chão. A percepção é de que a obra é baseada em eventos reais ou, no mínimo, criada dentro de um espectro do possível em vez de inventados sem qualquer base. E é uma história e tanto para uma figura aparentemente tão oculta e até secundária como um vice-presidente. Quem diria?
O carro chefe do sucesso de “Vice” é comandado por Christian Bale em mais um episódio da famosa série de interpretações camaleônicas. Dessa vez, o ator segue um caminho diferente de Gary Oldman em “Darkest Hour“, que usou próteses e maquiagem para se tornar o corpulento Winston Churchill, e decide engordar todos os 18kg necessários para ficar no mesmo porte de Dick Cheney. E isso não é o mais impressionante nem novidade, já que seu peso flutuara várias vezes em outros filmes. A verdadeira magia da interpretação é transformar uma pessoa absolutamente ordinária, sem comportamento ou temperamento peculiares, sem personalidade famosa ou grandes feitos populares, em alguém cativante. Dick Cheney não tem um jeito engraçado ou esquisito, é apenas um engravatado que fala pouco e tem um meio sorriso contido recorrente em seu rosto. É alguém bastante comum, a despeito dos cargos, que consegue manter o interesse da audiência em alta por ser tão bem interpretado. Na falta de qualidades notáveis, sobram todas as outras minúcias freqüentemente ignoradas para Bale absorver, algo que ele faz perfeitamente. Se Cheney abre a boca para qualquer coisa, sem dúvida sua fala e presença são acompanhadas por propósito e, acima de tudo, poder.
A outra parte do sucesso de uma história de apertos de mão e jogos de poder entre engravatados existe por causa da narrativa. Não houve absolutamente nenhuma lógica em colocar Margot Robbie numa banheira explicando um termo técnico, mas foi uma saída esperta de encaixar um trecho totalmente expositivo usando o humor em “The Big Short“. “Vice” faz algo parecido com seu narrador e brinca com o espaço que ele eventualmente ocupa no enredo, também fazendo pouco sentido e se safando por pouco com uma piadinha tirada do absoluto nada. Já outros momentos funcionam tão bem que fazem o espectador repensar a possibilidade de casar a comédia com um assunto quase burocrático pela quantidade de detalhes. Basta ficar atento à cena nada menos que genial entre o protagonista e o personagem de Steve Carrell, quando a gargalhada rouba espaço para dizer muito mais do que seria feito com palavras. A crítica é óbvia, não necessariamente um atestado político-moral definitivo sobre o assunto da história e totalmente eficiente.
Mesmo com todos os acertos, não consigo gostar do estilo de direção de Adam McKay. Desde “The Big Short“, de longe seu maior problema, a direção “na sua cara” não funciona comigo e retorna em “Vice”. Não que haja algum problema em associar um tom leve ao material em questão, como se fosse um tratamento incoerente de uma história demandando outro estilo. Histórias sobre política e economia, assuntos bastante complexos, não exigem pontos de vista sérios e análises meticulosas sobre detalhes, estatísticas e explicações sobre pessoas em funções de poder — o que não impede obras como “All the President’s Men” de funcionar com um tom sóbrio. O problema do estilo de McKay não é exatamente o humor, que freqüentemente acerta as marcas e consegue extrair graça de situações inusitadas. É mais uma questão de forma por si do que de manipulação de conteúdo; o jeito como o diretor constrói a narrativa visual para contar sua história.
É incômodo como o diretor parece procurar desculpa atrás de desculpa para encaixar uma ou mais imagens, trechos engraçados em vídeo ou simplesmente jeitos diferentes de falar uma mesma coisa. E nem sempre é para dar um toque cômico em uma cena de caráter possivelmente tedioso e chato, muitas vezes parece que é apenas variação por si; isto é, colocar algo diferente sem necessariamente ter um objetivo concreto em mente. Às vezes “Vice” novamente tenta deixar um conceito mais didático usando uma seqüência de fotos e imagens, mas ainda assim parece um motivo fraco para cumprir tal objetivo. Escolher e associar ao filme a primeira imagem que vem à mente é algo que até mesmo a pessoa sem nenhum tipo de treinamento ou conhecimento de narrativa visual consegue fazer, não parece uma saída inteligente nem ao menos espertinha de contar uma história.
“Vice” não tem sido o filme mais elogiado da temporada de premiações. Divergências de opiniões abordando todos os assuntos, desde a parte política até os aspectos relacionados à obra em si, como enredo, artifícios narrativos e até as atuações. Alguns destes pontos são válidos e de fato afetam seriamente a obra, que como um todo ainda consegue se erguer como uma das melhores experiências do ano. Afinal de contas, política ou não, tudo é sujeito a opinião a não ser os fatos. Se a história for tão verdadeira quanto afirma abertamente ser, então sem problema.