Dizem que o melhor costuma ficar para o final e “Trois couleurs: Rouge” me faz acreditar nisso. A conclusão da Trilogia das Cores de Krzysztof Kieslowski coloca-se acima das duas primeiras partes por ser o experimento que dá mais certo, trabalhando com a subversão conceitual dos ideais que representam a França como nação. Como se pode perceber, a trilogia até então não tratou de uma história sobre liberdade e outra sobre igualdade. Liberdade em “Bleu” é estar forçosamente livre do amor de uma filha, do conforto de um lar e o calor de uma família, coisas dificilmente indesejáveis; “Blanc” mostra uma noção peculiar de igualdade ao equalizar desigualdade com dar o troco, no sentido mais banal da expressão. “Trois couleurs: Rouge” abraça a mesma proposta seguindo um caminho que facilmente constitui a melhor metáfora das três obras para subverter o significado de fraternidade.
Valentine (Irène Jacob) é uma jovem modelo vivendo em Geneva, Suíça. Seus dias são relativamente tranqüilos com apenas um dia ou outro reservado para ensaios fotográficos e desfiles em passarelas, o resto deles ela passa sozinha por conta de seu namorado estar passando um bom tempo fora de casa. A relação dos dois é distante e apenas existe por conta de breves telefonemas carregados de ciúme durante a noite, os quais pouco aliviam sua solitude. Aliás, telefonemas são justamente o hobby preferido de um vizinho seu, Joseph Kern (Jean-Louis Trintignant). Quando Valentine descobre que ele escuta ligações de pessoas na região, uma relação peculiar nasce das duas visões de mundo conflitantes dos dois.
Inúmeras interpretações foram feitas a respeito da Trilogia das Cores. Não sobre o que cada coisa significa ou sobre ambigüidades de enredo, pontos deixados em aberto para o espectador dar seu próprio palpite. Nada disso. A maior fonte de comentários e análises profundas é a atenção de Krzysztof Kieslowski aos detalhes na construção de seu argumento geral de representar uma segunda face dos conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade. Uma das técnicas presentes nas três obras é o eco entre acontecimentos ou entre símbolos, elementos que surgem em dois pontos distintos da mesma obra ou mesmo entre duas obras diferentes. A lista é enorme e vai desde referências bíblicas até interpretações sobre um personagem funcionar como Deus tentando corrigir erros passados através de atos futuros, do nascimento de sete ratos ao nascimento de uma ninhada de sete cachorrinhos — o número simboliza perfeição e totalidade.
Mas dentre estas, uma análise mais simples revela diferenças elementares na forma dos filmes, como cada um coloca o conteúdo das histórias em execução. Sem dúvida é uma pontuação menos detalhista sobre obras complexas, porém não é por isso que devem ser ignoradas. “Trois couleurs: Bleu” pode ser visto como um estudo de personagem do caráter mais íntimo, quase totalmente dedicado à dimensão psicológica da protagonista e, conseqüentemente, focando em sua interpretação acima de tudo. Já “Trois couleurs: Blanc” deixou um pouco de lado o uso do comportamento como reflexo de estados de espírito a fim de desenvolver sua alegoria através de um homem dando o troco na ex-mulher que o arruinou. Simplificadamente, o primeiro usa personagem como principal ferramenta narrativa eo segundo usa enredo. Mais do que qualquer um dos predecessores, “Trois couleurs: Rouge” escolhe o diálogo como a aquarela de seus temas.
Pode parecer ridículo dizer algo assim porque todos os três têm personagem, enredo e diálogo envolvidos na construção da história. O nível de competência e execução deles inclusive soa como um argumento contra esta pontuação, pois a relação entre Valentine e Joseph é a melhor desenvolvida da trilogia e, no entanto, pertence ao longa que foca mais em diálogo. Como os elementos de um filme não são facilmente destacáveis, o destaque em diálogo e sua bela execução resultam no desenvolvimento e conseqüente evidência dos personagens. No entanto, não se trata de dizer qual dos filmes usa melhor qual elemento ou que um deles negligencia algum em prol de outro. É o caráter do foco dado que diferencia o protagonismo de Julie em Bleu da intensidade da interação entre Valentine e seu vizinho em “Trois couleurs: Rouge”.
Por exemplo, não se poderia dizer que Valentine individualmente é trabalhada tão a fundo quanto Julie. Há muito sobre sua personalidade e seu estado psicológico que não se chega a conhecer. Todavia, uma parcela cativante de sua personalidade floresce por meio de sua situação atual e conseqüente influência em suas interações com Joseph Kern. “Trois couleurs: Rouge” deixa sua riqueza narrativa brilhar quando estes se encontram e dão origem a um grande paradoxo conceitual, se posso dizer, envolvendo as pessoas o que há entre elas. É como o espaço entre as pessoas, como Before Sunset apontaria no ano seguinte. O que conecta as pessoas e o que as separa? Qual a dinâmica das relações interpessoais que resulta em pessoas tão distantes quanto cheias de coisas para dizer? Se as pessoas querem tanto estarem juntas de alguém, por que sempre estão sozinhas?
Eis, então, que uma garota que ainda acredita na prevalência de sentimentos bons encontra um homem quebrado e descrente, apático a quaisquer surpresas que a vida pode trazer por achar que já viu de tudo e não gostou. Há uma junção de opostos em direto conflito de visão, mas nada de caráter padrão. A divergência entre os dois praticamente fala por si quando eles conversam sobre as mais banais das coisas até finalmente entrar em assuntos mais delicados e revelar a natureza inconfundivelmente humana debaixo de todas as camadas que ambos se escondem. Há aprendizado a ser encontrado em visões nem completamente erradas, nem completamente corretas. Há algo na rispidez e austeridade de Joseph que ensina algo à Valentine, que, por sua vez, tem algo de puro em sua falta de experiência.
Assim, poderia-se dizer que o cerne de “Trois couleurs: Rouge” acontece através do encontro de duas partes. Há sentido nisso. No entanto, a história é tanto sobre contato quanto sobre a falta dele. Antes mesmo de Valentine encontrar Joseph, alguns sinais indicam uma narrativa sobre paralelos. E como se sabe, linhas paralelas nunca se encontram se continuarem no mesmo trajeto. Estas linhas são como vidas distintas: no começo dela jazem os erros passados, aqueles que não podem mais ser modificados; qualquer boa virada não muda o que houve de ruim. O mundo fraterno de Kieslowsky em “Trois couleurs: Rouge” é feito de paralelos, alguns que se encontram por mudarem o caminho e tantos outros que permanecem isolados. Ironicamente, mesmo quando há o encontro — que numa história pior seria o santo graal para todos os problemas — permanece um sentimento de que muito dá errado até quando as coisas dão certo. Soluções não são definitivas e aprendizados, longe de serem instantâneos. Mesmo quando há satisfação, ela é acompanhada de um toque pungente de realidade.